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CRÍTICA
Filme encara história com olhar crítico sobre os heróis
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Somos especialistas em camuflar nossas mazelas. Para não
ter de encarar certos efeitos dos
governos militares (1964-85), por
exemplo, transforma-se o antigo
e temível Dops em museu e reservam-se alguns metros quadrados
à preservação de algumas celas
-a julgar por elas, aliás, devia ser
delicioso ficar no Dops.
No cinema, com freqüência toca-se no assunto, mas raramente
a questão de quem eram aquelas
pessoas é efetivamente levantada.
É esse o esforço de "Cabra-Cega".
Um esforço que não se esquiva
das dificuldades do realismo.
Como nossa tradição tem como
refúgio a alegoria e seu conforto,
não se estranhará que nem tudo
sejam flores neste segundo longa
de ficção de Toni Venturi. Há atores que relutamos a aceitar em determinados papéis, há diálogos
superpovoados de jargão revolucionário, não falta nem mesmo a
adiposidade dos lugares-comuns.
No entanto, algo da alma dessas
pessoas resiste às deficiências e
consegue se mostrar no filme.
Em primeiro lugar, existe a oposição entre o que foi o projeto revolucionário e sua realidade. O
projeto está no apartamento do
arquiteto Pedro, onde vai se refugiar o revolucionário Tiago: claro,
elegante, funcional. A realidade
está nesse mesmo apartamento
do meio para o final do filme: um
caos, em resumidas contas.
Em segundo lugar, existe o
olhar crítico, para dizer o mínimo, sobre nossos heróis. Menos
do que paladino da justiça e da liberdade, Tiago é representado como um tipo autoritário, que à medida que a ação se desenvolve,
evolui quase ao delírio de poder.
Fala-se dos políticos que, quando em Brasília, vivem numa espécie de ilha da fantasia. Não é muito diferente o que se passa com o
angustiado Tiago, que, simultaneamente, mergulha numa solidão cada vez mais evidente e acredita com intensidade maior na
necessidade dessa luta para a qual
ninguém mais parece dar bola.
Toni Venturi recusa-se, talvez
por solidariedade à guerrilha e
aos guerrilheiros, a levar às últimas conseqüências o lado quixotesco do personagem. Em vez disso, desenvolve um amor entre ele
e Rosa, a moça que limpa o apartamento, inspirado nas segundas
núpcias de Prestes -um tanto artificial, a bem dizer, pois não é
muito crível o interesse dela por
um sujeito cuja arrogância inicial
evolui para o criminoso patológico à medida que o filme avança.
Em compensação, o personagem de Mateus é composto com
suave dignidade, e nunca sentimos um ator atuando quando Jonas Bloch está em cena.
Do ponto de vista da mise-en-scène, desafia com vigor o "bem-feitismo" do "cinema da retomada" e opta por procedimentos como câmera na mão e o recurso
freqüente ao "faux raccord". Este
é talvez o aspecto mais estimável
de um filme no todo bastante estimável, seja por aquilo que diz sobre o período das guerrilhas, seja
pelo que não diz, mas deixa como
sugestão a futuros filmes.
Cabra-Cega
Direção: Toni Venturi
Produção: Brasil, 2005
Com: Leonardo Medeiros, Débora Duboc
Quando: a partir de hoje no Cine
Morumbi, Espaço Unibanco e Frei
Caneca Unibanco Arteplex
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