São Paulo, sexta-feira, 15 de abril de 2005

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CRÍTICA

Filme encara história com olhar crítico sobre os heróis

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Somos especialistas em camuflar nossas mazelas. Para não ter de encarar certos efeitos dos governos militares (1964-85), por exemplo, transforma-se o antigo e temível Dops em museu e reservam-se alguns metros quadrados à preservação de algumas celas -a julgar por elas, aliás, devia ser delicioso ficar no Dops.
No cinema, com freqüência toca-se no assunto, mas raramente a questão de quem eram aquelas pessoas é efetivamente levantada. É esse o esforço de "Cabra-Cega". Um esforço que não se esquiva das dificuldades do realismo.
Como nossa tradição tem como refúgio a alegoria e seu conforto, não se estranhará que nem tudo sejam flores neste segundo longa de ficção de Toni Venturi. Há atores que relutamos a aceitar em determinados papéis, há diálogos superpovoados de jargão revolucionário, não falta nem mesmo a adiposidade dos lugares-comuns.
No entanto, algo da alma dessas pessoas resiste às deficiências e consegue se mostrar no filme.
Em primeiro lugar, existe a oposição entre o que foi o projeto revolucionário e sua realidade. O projeto está no apartamento do arquiteto Pedro, onde vai se refugiar o revolucionário Tiago: claro, elegante, funcional. A realidade está nesse mesmo apartamento do meio para o final do filme: um caos, em resumidas contas.
Em segundo lugar, existe o olhar crítico, para dizer o mínimo, sobre nossos heróis. Menos do que paladino da justiça e da liberdade, Tiago é representado como um tipo autoritário, que à medida que a ação se desenvolve, evolui quase ao delírio de poder.
Fala-se dos políticos que, quando em Brasília, vivem numa espécie de ilha da fantasia. Não é muito diferente o que se passa com o angustiado Tiago, que, simultaneamente, mergulha numa solidão cada vez mais evidente e acredita com intensidade maior na necessidade dessa luta para a qual ninguém mais parece dar bola.
Toni Venturi recusa-se, talvez por solidariedade à guerrilha e aos guerrilheiros, a levar às últimas conseqüências o lado quixotesco do personagem. Em vez disso, desenvolve um amor entre ele e Rosa, a moça que limpa o apartamento, inspirado nas segundas núpcias de Prestes -um tanto artificial, a bem dizer, pois não é muito crível o interesse dela por um sujeito cuja arrogância inicial evolui para o criminoso patológico à medida que o filme avança.
Em compensação, o personagem de Mateus é composto com suave dignidade, e nunca sentimos um ator atuando quando Jonas Bloch está em cena.
Do ponto de vista da mise-en-scène, desafia com vigor o "bem-feitismo" do "cinema da retomada" e opta por procedimentos como câmera na mão e o recurso freqüente ao "faux raccord". Este é talvez o aspecto mais estimável de um filme no todo bastante estimável, seja por aquilo que diz sobre o período das guerrilhas, seja pelo que não diz, mas deixa como sugestão a futuros filmes.


Cabra-Cega
   
Direção: Toni Venturi
Produção: Brasil, 2005
Com: Leonardo Medeiros, Débora Duboc
Quando: a partir de hoje no Cine Morumbi, Espaço Unibanco e Frei Caneca Unibanco Arteplex


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