São Paulo, sábado, 15 de agosto de 1998

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Rio, São Paulo e as ilhas Brasil

ALBERTO DINES
Colunista da Folha


País-continente, agregado pela geografia e depois pela geopolítica, não fomos muito aquinhoados em matéria de ilhas pela natureza ou a Divina Providência. Próximas do litoral, penínsulas submersas por terremotos, exceto as minúsculas Fernando de Noronha, Rocas, Martin Vaz e Trindade, que funcionam como "show-room" da vida insular.
E, no entanto, já fomos conhecidos como ilha Brasil ou ilhas Brasil, muito antes do descobrimento ou "achamento" oficial destas bandas. A primeira referência cartográfica a uma ilha com o nosso nome data de 1324, portanto, 176 anos antes da façanha cabralina.
No singular ou no plural, o nome remetia a um território mítico e fabuloso (edênico, para usar o adjetivo empregado por Sérgio Buarque de Holanda, no seu clássico "Visão do Paraíso"). O nome é de origem celta ou irlandesa e teve, na sua vida pré-uterina, diversas grafias: Ho Brasil, O'Brasil, Hy Brasil, Bresail, Brazi, Bracil, Brazir e muitas outras.
Fico por aqui, o assunto é fascinante e interminável. Certamente aparecerá ao longo desta temporada de estudos multidisciplinares que irá até o ano 2000, quando completamos cinco séculos de existência legal. Nós, comuns mortais, aguardamos com ansiedade o rico manancial de informações que se prenuncia.
Enquanto isso, nas horas vagas, divirto-me com esta cosmogonia brasileira, por conta do projeto Aipotú -utopia às avessas- mencionado anteriormente. Aproveito para informar que já recebi valiosas contribuições de leitores e amigos, eminentes acadêmicos, entre os quais Marisa Lajolo e Carlos Vogt.
Sei de outras adesões, todas dependentes de um imperioso preparo físico, uma vez que impõem a disposição de passar longos períodos de cabeça para baixo e a capacidade de ler ao contrário. Além de uma carga imperecível de "mob romuh", hormônio recém-descoberto, conhecido pelos antigos como bom humor.
De volta às ilhas. Apesar da inteireza e continentalidade, da retórica federativa e do espírito nacional tão evidente de quatro em quatro anos durante o Mundial de Futebol, é visível a nossa condição de arquipélago. O melhor exemplo é a decantada aproximação Rio-São Paulo. A ponte aérea que une as duas cidades é uma história de sucesso nos anais do transporte aéreo (hoje, aliás, iniciando novo ritmo).
A Rede Globo gerando o "Jornal Nacional" no Rio e o "Jornal da Globo" em São Paulo faz uma exibição da sua maestria técnica. Os cinco jornalões nacionais e os semanários que podemos receber em casa, independente da localização das suas redações, parecem indicar a iminência da megalópole.
Ricardo Teixeira, o mandão da CBF, sem querer, talvez tenha contribuído decisivamente para a imantação dos dois pólos quando escolheu Wanderley Luxemburgo, um carioca que fez carreira paulista, como técnico da seleção nacional. O futebol é uma alavanca, um paradigma, uma plataforma sobre a qual operam-se grandes transformações.
Mas aqui na paulicéia pronuncia-se "futêbol" e no Rio, "futibol", embora a diferença de sotaque seja o que conta menos no processo afinação e integração (conheço gente em São Paulo com ouvido tão sensível que consegue distinguir a entonação específica do Brás, da Mooca e do Brooklin; a de Itu, até eu).
Apesar dos esforços agregadores, persiste a desagregação. Diminui o tempo que leva para ir de São Paulo ao Rio, mas o espaço, a distância, permanece igual. E não vai por conta apenas das discrepâncias da prosódia, atitudes ou altitudes.
A cola ainda não colou. A impregnação ainda não se deu.
A melhor demonstração são as pesquisas eleitorais nos dois Estados onde, por enquanto, lideram Francisco Rossi e Anthony Garotinho, duas figuras nitidamente provinciais. Um fez a carreira em Osasco, periferia de São Paulo, e outro, em Campos, mais perto do Espírito Santo.
Desconfio da "pesquisite" e da "pesquisótica" e, sobretudo, da tentativa de perenizar sondagens e situações transitórias por meio do uso de palavras fortes e fatais: fulano dispara, sicrano despenca.
De qualquer forma, o populismo paroquial que ora se manifesta nestas aferições indica uma nítida vocação para a insularidade num momento em que se pede discernimento mais amplo.
O mestre Antônio Cândido de Mello e Souza, nascido e criado no Rio, mas com carreira acadêmica em São Paulo, acaba de completar 80 anos e recebeu o Prêmio Camões, o maior galardão literário da lusofonia.
A imprensa paulista está sabendo comemorar, embora com destaque matizado pelas opções ideológicas de cada veículo (o caderno "Mais!", de 19 de julho, da Folha, é peça para guardar). Mas os jornais cariocas ainda não despertaram.
Antônio Candido é autor do clássico "Formação da Literatura Brasileira" (Itatiaia, dois volumes, primeira edição, 1957; oitava, 1998) e de uma vasta produção de ensaios, memórias e maravilhosas crônicas (a obra mais recente, em que se combinam esses gêneros, é "Recortes", 1993, Cia. da Letras).
Figura generosa e mansa, oposto das fugazes estridências, é o mais sólido pilar da cultura brasileira. Construtor de pontes, sua própria vivência é um sistema em que se harmonizam o humanismo europeu, os anos dourados em que o Rio, capital federal, absorvia e irradiava pensamento, e o salto paulista que começou com a missão francesa da USP. Nele estão Drummond (Carlos), Oswald (de Andrade), Veríssimo (Érico), Alceu (Amoroso Lima), Mário (de Andrade), Bastide (Roger).
Antônio Candido é um mundo, ou o mundo. Que, no entanto, não consegue chegar ou ser enxergado por todos os habitantes das ilhas Brasil. Notadamente, a ilha planaltina e a fluminense.
Recentemente, deu-se uma interessante rixa tendo como ringue a página de opinião do "Jornal do Brasil" e, como pivô, Candido Portinari, o pintor paulista que celebrizou-se no Rio.
De um lado, Moacir Werneck de Castro, jornalista e ensaísta, intelectual da melhor cepa (presumo que nascido em Vassouras, como o primo Carlos Lacerda, mas ao contrário dele, fiel socialista) e que, desde "A Manhã", em 1935, participa ativamente das mais importantes iniciativas de jornalismo cultural, além da ininterrupta atuação na "cozinha" das mais importantes redações.
Do outro lado, Sérgio Micelli, professor titular de sociologia da USP, autor, entre outros, de "Intelectuais e Classe dirigente no Brasil, 1920-1945", organizador da "História das Ciências Sociais no Brasil" (dois volumes, 1989 e 1995) e, mais recentemente, de "Imagens Negociadas/Retratos da Elite Brasileira, 1920-1940", cujas referências à obra retratista de Portinari geraram a polêmica.
A pauleira manteve-se em padrões civilizados -o que já é uma novidade-, mas não se circunscreve às concessões artísticas que, segundo Micelli, o artista teria feito aos retratados. Transborda para conflitos mais abrangentes que envolvem a produção acadêmica (que Werneck chama de "grupo de extermínio universitário" e Micelli considera livre de "alinhamentos a uma tábua fixa de valores" - "Jornal do Brasil", dias 23 de junho, 7 e 9 de julho deste ano)
Os litigantes, com certeza, aborreceram-se. Mas para os leitores do "Jornal do Brasil" o debate foi estimulante porque neste processo de fragmentação e simplificação a que estamos submetidos fazem falta ingredientes mais consistentes, capazes de despertar a curiosidade intelectual e a reflexão.
As ilhas Brasil usam comunicar-se por meio de uma aparelhagem de ressonância que não é sensível aos timbres mais graves, acionada apenas pelos agudos. E como é impossível manter o alarido, cansam e fecham-se em si mesmas. Nada a ver com ensimesmar-se.



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