São Paulo, quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NINA HORTA

Tudo cabe no assunto comida


A revista "Gourmet" cumpria o papel de civilizar você, de um modo afável e geralmente irônico


RECEBI UM e-mail do Josimar Melo com o assunto "Luto". Ai, quem morreu? Era a participação do fim da revista "Gourmet" americana. Primeiro, um susto. A "Gourmet"? Como? Não era lida por 1 milhão de pessoas? É pouco? Os comentários sobre esse fechamento fora de propósito para os leitores estão no blog do Josimar.
Imaginem que todas as assinantes brasileiras, ou quase todas, guardavam a revista. E um dia morriam. As filhas se viam com números belíssimos, receitas infindáveis, mas onde guardar? Lembravam-se de mim. A Nina gosta, trabalha com isso, minha mãe gostaria que ficasse com a coleção. Vinham, batiam um papo, tomavam um café, despejavam no chão as pirâmides e saiam felizes, cabeça leve. E a megera aqui, pensava: "A mãe não era minha, vamos ao lixo". E zás. Onde poderia guardar tudo aquilo? Achava que o simples recolher já era uma boa ação. Agora estou com remorso e adoraria rever a coleção inteira.
Como costuma acontecer, só descobri que fomos imensamente influenciados pela revista depois que ela desapareceu. Primeiro que era boa de ler, mesmo para quem não cozinhava. Se você programasse uma viagem a Veneza ia atrás da "Gourmet" e acharia lá uma pesquisa feita por alguém muito honesto e inteligente que contaria sobre o lugar, os museus, a beleza da cidade, os turistas, o mercado, o melhor hotel, o modo de se comer bem sem gastar muito, as livrarias. E sem palavrório de enganar turista. Reportagens de peso. E, se nem passasse na sua cabeça a ideia de ir a Veneza, a boa escrita e as ótimas fotos faziam com que você se sentisse como se já houvesse ido e ainda trazido um cinzeiro de Murano.
Tudo cabia no assunto comida. Os autores da "Gourmet" cobriam o país e o mundo. As receitas ficavam no fim da revista, mas eram testadas na cozinha da "Gourmet", com errata na próxima edição, cartas de leitor e tudo o mais.
Como implico com editores de revista (já escrevi em muitas delas) que proíbem ingredientes caros e diferentes, próprios de cada lugar! Então nós, os remediados, não podemos saber das coisas, estudar, nos interessar? E se um dia ficarmos ricos, já imaginaram o tempo que perdemos só aprendendo sobre talo de couve? Se se escreve sobre o bem viver do mundo, sem esnobismo, constatando um fato, não há motivos para que só uma elite endinheirada possa ler. Diz Ruth Reichl: "Quando a comida não era considerada um assunto sério, Mac Ausland [fundador] acreditava que era o único assunto. Para ele, comida incluía caça, pesca, história, ciência, política, antropologia e ficção".
Eu nunca havia ido a Nova York, mas, quando fui, sabia exatamente o que visitar, o que pedir, quem era quem. A revista cumpria o papel de civilizar você, de um modo afável e geralmente irônico. Foi fundada um pouco antes da Segunda Guerra, um tipo de coragem esclarecida.
Era uma publicação de bem viver e ainda admoestava as pessoas a guardarem os números para depois da guerra, quando conseguissem os ingredientes. É justamente na guerra que precisamos ter esperança de dias melhores, sonhar debruçados sobre talões de racionamento, pagar bons escritores que nos encham os olhos com o retrato de uma vida boa de viver. E nisso a "Gourmet" era mestra.
Será que não podem colocar os 78 anos da "Gourmet" on-line? Releríamos grandes autores e aprenderíamos um naco de 68 anos da história da comida.
A DBA publicou uma antologia da Ruth Reichl, última editora da revista, "Banquetes Intermináveis", com reportagens que ela julgou merecedoras do aniversário de 60 anos. Fiquei conhecendo o livro a fundo, traduzi uns pedaços dele. Adoro esse livro. Quem quiser se lembrar ou conhecer a "Gourmet", leia. Vale a pena.

ninahorta@uol.com.br

Texto Anterior: Tentações
Próximo Texto: Festa da uva
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.