São Paulo, quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

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MARCELO COELHO

Um criminoso que renasce das cinzas

O nome do vilão já tem algo de hipnótico -Doutor Mabuse-, e os filmes que o diretor Fritz Lang dedicou a esse personagem constam como clássicos da história do cinema. Durante vários anos, persegui Mabuse em seus esconderijos: cineclubes em petição de miséria, oblíquas retrospectivas organizadas por alguma associação alemã, videolocadoras com os papéis em desordem... e o demoníaco mestre dos mil disfarces sempre escapava do meu alcance.
Com o DVD, as coisas ficaram mais fáceis, e a distribuidora Continental está lançando uma coleção bem grande dos filmes de Lang -não só "M - O Vampiro de Dusseldorf" e "Metropolis", suas duas realizações mais famosas, mas também antigüidades como "Os Nibelungos" (1922-1924), além dos filmes de aventura já do fim da sua carreira, como "Sepulcro Indiano", de 1959.
Pude, então, assistir aos dois primeiros filmes com o personagem nefasto: "Dr. Mabuse - O Jogador" e sua continuação, "Dr. Mabuse - O Inferno do Crime". As duas produções são de 1921/22; ainda está para ser lançado "O Testamento do Dr. Mabuse", de 1933, o último filme que Lang fez antes de fugir do nazismo.
É claro que o DVD facilita as coisas, como eu estava dizendo: as cópias digitais têm uma nitidez, um contraste, que os vídeos não conseguiam apresentar, e imagino que essas caixinhas com clássicos do cinema mudo se tornem de algum modo mais atraentes para o consumidor -com seus bônus ou discos extras com documentários a respeito- do que as velhas versões em VHS, consideravelmente mais "sujas", rangentes, exigindo rebobinação.
Entretanto me arrisco a dizer que o DVD representará mais uma estaca no coração do cinema mudo. O videocassete ainda tinha um pouco da materialidade frágil, do barulho de fundo das películas de antanho. Era comum que o aparelho comesse a fita e depois a vomitasse, como se fosse uma das engrenagens macabras de "Metropolis". Ocasionais trepidações do VHS ainda podiam lembrar os percalços do projetista.
Nem falo das primeiras exibições, com o piano tocando e a platéia sentindo medo de fato; penso numa salinha de cineclube, como aquela que existia no Bexiga, num inverno de 1976 ou 81 (não sei por quê, mas minhas lembranças de São Paulo sempre se fixam nos meses de junho e julho). Lembro-me até de ter assistido a filmes ao lado de pessoas que fumavam dentro da sala. Espirais azuis se confundiam com a poeira das diligências perseguidas pelos índios, com os tiroteios nas ruas de Chicago, com as brumas do castelo assombrado... E não há quem não tenha experimentado alguma vez virar a cabeça para ver, na parede de trás da sala de cinema, a janelinha operosa de onde piscava, como uma metralhadora minúscula, a luz do projetor.
A precariedade da exibição combinava com o tipo de movimento, em geral bem brusco e desmedido, dos corpos que apareciam na tela. Havia também a sensação de que aquela preciosidade do cinema não seria exibida tão cedo, de que estávamos diante de um momento raro, de um evento ritual, reverente e lúgubre; algo mais próximo de uma sessão espírita do que de um espetáculo comercial. Sem isso, os filmes mudos perdem bastante do seu valor.
O que eu vi, na cópia perfeita do DVD, foram certamente filmes do Dr. Mabuse, mas incapazes de oferecer uma coisa essencial: a experiência de estar vendo os filmes do Dr. Mabuse. O que se salva? Não sendo cinéfilo -e apesar dos bons comentários de Claude Chabrol no DVD "Dossiê Fritz Lang", que faz parte do pacote-, eu diria que bem pouco, à primeira vista.
O que se desenrolava à minha frente era um folhetim de aventuras antiquadíssimo, com um roteiro dos mais atribulados. Sofrendo de grave falta de método em suas operações, o vilão e o investigador encontravam-se e desencontravam-se sem que a trama progredisse; um grã-fino, que pensávamos fosse ser o mocinho da história, é eliminado no meio do filme; o próprio Dr. Mabuse, que adota vários disfarces sem muita razão, começa enriquecendo com grandes especulações na Bolsa de Valores para, em seguida, dedicar-se à atividade, sem dúvida menos lucrativa, de hipnotizar parceiros em mesas de carteado.
Mas é isso mesmo: hipnotizador, vilão capaz de fanatizar tanto seus brutais comparsas quanto as representantes do belo sexo, Mabuse se interessa menos pelo dinheiro do que por dominar o destino das pessoas. Como o filme de Lang foi rodado na Alemanha pré-nazista, sempre é possível dizer que se trata de uma profecia a respeito de Hitler. Mas toda representação do mal naquela época passa agora por ser premonitória. Apresentando-se como "retratos de nosso tempo", os filmes com Mabuse tampouco deixam de ter pontos de semelhança com a própria ideologia nazista: mostram-nos, por um exemplo, um conde efeminado, adepto da arte expressionista, como um símbolo da "fraqueza" e da "decadência" daqueles tempos, que urgia "regenerar". Politicamente o filme é, pelo menos, ambíguo.
Mesmo assim... não consigo tirar Mabuse da cabeça. Certos detalhes bizarros me perseguem. O delírio final do vilão dentro de um esconderijo do qual não pode sair, junto aos seis empregados cegos; a estátua africana no salão do conde enlouquecido; o complexo e lento maquinismo que vemos ser posto em funcionamento num cassino clandestino, para enganar a polícia; e, sobretudo, os estranhíssimos óculos que Mabuse manipula quando quer hipnotizar o investigador.
São uns óculos retangulares, com aros que parecem de madeira, num desenho vagamente repuxado, lembrando vagamente a forma de caracteres chineses; suas hastes podem ir para a frente e para trás, como se fossem antenas de um inseto descomunal. A luz do cassino, batendo numa das lentes, perturba o detetive, que se torna, então, presa de Mabuse.
Aquele quadradinho iluminado, com as bordas retangulares e repuxadas (pensei depois), era como uma televisão. Fora da tela do cinema, Mabuse, o gênio dos mil disfarces, sobrevivia no meu DVD.


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