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MARCELO COELHO
Um criminoso que renasce das cinzas
O nome do vilão já tem algo
de hipnótico -Doutor Mabuse-, e os filmes que o diretor
Fritz Lang dedicou a esse personagem constam como clássicos da
história do cinema. Durante vários anos, persegui Mabuse em
seus esconderijos: cineclubes em
petição de miséria, oblíquas retrospectivas organizadas por alguma associação alemã, videolocadoras com os papéis em desordem... e o demoníaco mestre dos
mil disfarces sempre escapava do
meu alcance.
Com o DVD, as coisas ficaram
mais fáceis, e a distribuidora
Continental está lançando uma
coleção bem grande dos filmes de
Lang -não só "M - O Vampiro
de Dusseldorf" e "Metropolis",
suas duas realizações mais famosas, mas também antigüidades
como "Os Nibelungos" (1922-1924), além dos filmes de aventura já do fim da sua carreira, como
"Sepulcro Indiano", de 1959.
Pude, então, assistir aos dois
primeiros filmes com o personagem nefasto: "Dr. Mabuse - O Jogador" e sua continuação, "Dr.
Mabuse - O Inferno do Crime". As
duas produções são de 1921/22;
ainda está para ser lançado "O
Testamento do Dr. Mabuse", de
1933, o último filme que Lang fez
antes de fugir do nazismo.
É claro que o DVD facilita as
coisas, como eu estava dizendo: as
cópias digitais têm uma nitidez,
um contraste, que os vídeos não
conseguiam apresentar, e imagino que essas caixinhas com clássicos do cinema mudo se tornem de
algum modo mais atraentes para
o consumidor -com seus bônus
ou discos extras com documentários a respeito- do que as velhas
versões em VHS, consideravelmente mais "sujas", rangentes,
exigindo rebobinação.
Entretanto me arrisco a dizer
que o DVD representará mais
uma estaca no coração do cinema
mudo. O videocassete ainda tinha
um pouco da materialidade frágil, do barulho de fundo das películas de antanho. Era comum
que o aparelho comesse a fita e
depois a vomitasse, como se fosse
uma das engrenagens macabras
de "Metropolis". Ocasionais trepidações do VHS ainda podiam
lembrar os percalços do projetista.
Nem falo das primeiras exibições, com o piano tocando e a platéia sentindo medo de fato; penso
numa salinha de cineclube, como
aquela que existia no Bexiga,
num inverno de 1976 ou 81 (não
sei por quê, mas minhas lembranças de São Paulo sempre se fixam
nos meses de junho e julho). Lembro-me até de ter assistido a filmes ao lado de pessoas que fumavam dentro da sala. Espirais
azuis se confundiam com a poeira
das diligências perseguidas pelos
índios, com os tiroteios nas ruas
de Chicago, com as brumas do
castelo assombrado... E não há
quem não tenha experimentado
alguma vez virar a cabeça para
ver, na parede de trás da sala de
cinema, a janelinha operosa de
onde piscava, como uma metralhadora minúscula, a luz do projetor.
A precariedade da exibição
combinava com o tipo de movimento, em geral bem brusco e
desmedido, dos corpos que apareciam na tela. Havia também a
sensação de que aquela preciosidade do cinema não seria exibida
tão cedo, de que estávamos diante
de um momento raro, de um
evento ritual, reverente e lúgubre;
algo mais próximo de uma sessão
espírita do que de um espetáculo
comercial. Sem isso, os filmes mudos perdem bastante do seu valor.
O que eu vi, na cópia perfeita do
DVD, foram certamente filmes do
Dr. Mabuse, mas incapazes de
oferecer uma coisa essencial: a experiência de estar vendo os filmes
do Dr. Mabuse. O que se salva?
Não sendo cinéfilo -e apesar dos
bons comentários de Claude Chabrol no DVD "Dossiê Fritz Lang",
que faz parte do pacote-, eu diria que bem pouco, à primeira
vista.
O que se desenrolava à minha
frente era um folhetim de aventuras antiquadíssimo, com um roteiro dos mais atribulados. Sofrendo de grave falta de método
em suas operações, o vilão e o investigador encontravam-se e desencontravam-se sem que a trama progredisse; um grã-fino, que
pensávamos fosse ser o mocinho
da história, é eliminado no meio
do filme; o próprio Dr. Mabuse,
que adota vários disfarces sem
muita razão, começa enriquecendo com grandes especulações na
Bolsa de Valores para, em seguida, dedicar-se à atividade, sem
dúvida menos lucrativa, de hipnotizar parceiros em mesas de
carteado.
Mas é isso mesmo: hipnotizador, vilão capaz de fanatizar tanto seus brutais comparsas quanto
as representantes do belo sexo,
Mabuse se interessa menos pelo
dinheiro do que por dominar o
destino das pessoas. Como o filme
de Lang foi rodado na Alemanha
pré-nazista, sempre é possível dizer que se trata de uma profecia a
respeito de Hitler. Mas toda representação do mal naquela época passa agora por ser premonitória. Apresentando-se como "retratos de nosso tempo", os filmes
com Mabuse tampouco deixam
de ter pontos de semelhança com
a própria ideologia nazista: mostram-nos, por um exemplo, um
conde efeminado, adepto da arte
expressionista, como um símbolo
da "fraqueza" e da "decadência"
daqueles tempos, que urgia "regenerar". Politicamente o filme é,
pelo menos, ambíguo.
Mesmo assim... não consigo tirar Mabuse da cabeça. Certos detalhes bizarros me perseguem. O
delírio final do vilão dentro de
um esconderijo do qual não pode
sair, junto aos seis empregados cegos; a estátua africana no salão
do conde enlouquecido; o complexo e lento maquinismo que vemos
ser posto em funcionamento num
cassino clandestino, para enganar a polícia; e, sobretudo, os estranhíssimos óculos que Mabuse
manipula quando quer hipnotizar o investigador.
São uns óculos retangulares,
com aros que parecem de madeira, num desenho vagamente repuxado, lembrando vagamente a
forma de caracteres chineses; suas
hastes podem ir para a frente e
para trás, como se fossem antenas
de um inseto descomunal. A luz
do cassino, batendo numa das
lentes, perturba o detetive, que se
torna, então, presa de Mabuse.
Aquele quadradinho iluminado, com as bordas retangulares e
repuxadas (pensei depois), era como uma televisão. Fora da tela do
cinema, Mabuse, o gênio dos mil
disfarces, sobrevivia no meu
DVD.
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