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BERNARDO CARVALHO
Contra-exemplos
Em Cuba, escritor Virgilio Piñera sempre foi considerado um autor excêntrico
NUM ARTIGO publicado recentemente na "The New Yorker", o tcheco Milan Kundera descreve dois tipos de provincianismo literário: o das pequenas nações, incapazes de ver a própria produção literária num contexto mais
amplo, mundial; e o das grandes nações, indiferentes ao que se passa
além de suas fronteiras. Tanto o
complexo de inferioridade das primeiras como o de superioridade das
segundas encobrem, no fundo, uma
estratégia protecionista.
O que salta aos olhos, entretanto, é
a perversão desse sistema de espelhos em que as nações periféricas
tentam se defender da indiferença
da metrópole, criando especificidades nacionais que a metrópole termina por reduzir a cor local e folclore, enquanto impõe as suas próprias
especificidades como modelo absoluto ao resto do mundo.
Formado na experiência de uma
pequena nação da Europa Oriental,
Kundera cita o polonês Witold
Gombrowicz como exemplo de resistência. Durante seu exílio em
Buenos Aires, entre 1939 e 63, Gombrowicz conviveu com o cubano Virgilio Piñera, outro estrangeiro mantido à margem da cultura local, e
com ele conspirou na sala de xadrez
do café Rex contra a literatura oficial
argentina.
Em Cuba, Piñera (1912-79) sempre foi considerado um excêntrico
-e não apenas por ser homossexual,
o que o tornou especialmente incômodo aos olhos da revolução. Nascido numa família pobre do interior,
passou grande parte da vida em casas de cômodos de Havana, tentando sobreviver como tradutor e editor de revistas literárias. Viveu em
Buenos Aires entre 1946 e 56. Morreu em Havana, em 1979, de infarto,
no ostracismo. Suas obras só passaram a ser publicadas e reconhecidas
depois de 84. No Brasil, saíram os
"Contos Frios", pela Iluminuras, e
"A Carne de René", pela Arx.
Em arte, você pode defender muita coisa em teoria, mas muitas vezes
é só na realização dos outros que
consegue aquilatar a verdade e o alcance daquilo em que acredita. Por
isso, os outros artistas são tão importantes para os artistas. Porque
abrem caminhos e apontam desvios
onde parecia não haver saídas. É por
isso também que as literaturas estrangeiras, na sua pluralidade, são
fundamentais para a literatura de
qualquer país, tanto contra a hipertrofia da auto-imagem e dos modelos nacionais como contra a imposição de um consenso mundial, estético, ideológico ou mercadológico, como é o caso da hegemonia do modelo anglo-saxão no capitalismo tardio. O que resiste como estrangeiro
(e estranho) serve de antídoto e de
contra-exemplo quando a realidade
insiste em contradizer projetos desviantes e quando, de tanto lutar por
eles, os artistas fraquejam e cedem
ao que os cerca.
Quando você acha que tudo só pode ser de um jeito (quando todo
mundo faz do mesmo jeito), só a surpresa de obras inusitadas (e muitas
vezes indesejáveis) permite redescobrir o próprio fundamento do que
leva à literatura e à arte: que sempre
haverá outros jeitos. O sentido de liberdade que esses contra-exemplos
produzem é essencial para a sobrevivência de qualquer criação.
Os "Cuentos Completos", de Virgilio Piñera, editados pela Alfaguara
(Espanha), me serviram de contra-exemplo neste fim de ano. Eu nunca
tinha lido Virgilio Piñera. Diante de
uma literatura que no geral parece
ter se agarrado a modelos engessados e se afunilar em nichos de mercado, a radicalidade sem virtuosismos desse cubano marginal em mais
de um sentido me fez rever o óbvio:
que a imaginação é a origem de toda
literatura. "Além de escrever o que
vivemos, escrevemos o que não vivemos", escreve Piñera no conto "O
Inimigo", de 1955, que discorre sobre o medo de si mesmo.
Piñera trabalhava com paradoxos.
As inversões estão por todos os lados. A morte pode ser salvação e a vida pode ser morte. Num belo conto
de 1965, "A Rebelião dos Enfermos",
os sãos são convocados a dividir com
os doentes as salas, enfermarias e
quartos de um hospital, encenando
doenças imaginárias para os verdadeiros moribundos. A morte, no entanto, só vem quando crêem que não
sofrem de nada e já não sentem nem
mesmo a dor dos próprios calos.
Piñera foi um calo no pé de uma
revolução que terminou por repudiar tudo o que não se encaixava no
seu modelo de comportamento, de
arte e de literatura. Os paradoxos
são a melhor arma contra os modelos. As artes só poderão continuar a
existir como exaltação da invenção
enquanto houver artistas e escritores como Piñera para contradizer o
que eu, você, a revolução, as grandes
ou as pequenas nações acham que as
artes são ou devem ser.
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