São Paulo, terça-feira, 16 de janeiro de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Contra-exemplos

Em Cuba, escritor Virgilio Piñera sempre foi considerado um autor excêntrico

NUM ARTIGO publicado recentemente na "The New Yorker", o tcheco Milan Kundera descreve dois tipos de provincianismo literário: o das pequenas nações, incapazes de ver a própria produção literária num contexto mais amplo, mundial; e o das grandes nações, indiferentes ao que se passa além de suas fronteiras. Tanto o complexo de inferioridade das primeiras como o de superioridade das segundas encobrem, no fundo, uma estratégia protecionista.
O que salta aos olhos, entretanto, é a perversão desse sistema de espelhos em que as nações periféricas tentam se defender da indiferença da metrópole, criando especificidades nacionais que a metrópole termina por reduzir a cor local e folclore, enquanto impõe as suas próprias especificidades como modelo absoluto ao resto do mundo.
Formado na experiência de uma pequena nação da Europa Oriental, Kundera cita o polonês Witold Gombrowicz como exemplo de resistência. Durante seu exílio em Buenos Aires, entre 1939 e 63, Gombrowicz conviveu com o cubano Virgilio Piñera, outro estrangeiro mantido à margem da cultura local, e com ele conspirou na sala de xadrez do café Rex contra a literatura oficial argentina.
Em Cuba, Piñera (1912-79) sempre foi considerado um excêntrico -e não apenas por ser homossexual, o que o tornou especialmente incômodo aos olhos da revolução. Nascido numa família pobre do interior, passou grande parte da vida em casas de cômodos de Havana, tentando sobreviver como tradutor e editor de revistas literárias. Viveu em Buenos Aires entre 1946 e 56. Morreu em Havana, em 1979, de infarto, no ostracismo. Suas obras só passaram a ser publicadas e reconhecidas depois de 84. No Brasil, saíram os "Contos Frios", pela Iluminuras, e "A Carne de René", pela Arx.
Em arte, você pode defender muita coisa em teoria, mas muitas vezes é só na realização dos outros que consegue aquilatar a verdade e o alcance daquilo em que acredita. Por isso, os outros artistas são tão importantes para os artistas. Porque abrem caminhos e apontam desvios onde parecia não haver saídas. É por isso também que as literaturas estrangeiras, na sua pluralidade, são fundamentais para a literatura de qualquer país, tanto contra a hipertrofia da auto-imagem e dos modelos nacionais como contra a imposição de um consenso mundial, estético, ideológico ou mercadológico, como é o caso da hegemonia do modelo anglo-saxão no capitalismo tardio. O que resiste como estrangeiro (e estranho) serve de antídoto e de contra-exemplo quando a realidade insiste em contradizer projetos desviantes e quando, de tanto lutar por eles, os artistas fraquejam e cedem ao que os cerca.
Quando você acha que tudo só pode ser de um jeito (quando todo mundo faz do mesmo jeito), só a surpresa de obras inusitadas (e muitas vezes indesejáveis) permite redescobrir o próprio fundamento do que leva à literatura e à arte: que sempre haverá outros jeitos. O sentido de liberdade que esses contra-exemplos produzem é essencial para a sobrevivência de qualquer criação.
Os "Cuentos Completos", de Virgilio Piñera, editados pela Alfaguara (Espanha), me serviram de contra-exemplo neste fim de ano. Eu nunca tinha lido Virgilio Piñera. Diante de uma literatura que no geral parece ter se agarrado a modelos engessados e se afunilar em nichos de mercado, a radicalidade sem virtuosismos desse cubano marginal em mais de um sentido me fez rever o óbvio: que a imaginação é a origem de toda literatura. "Além de escrever o que vivemos, escrevemos o que não vivemos", escreve Piñera no conto "O Inimigo", de 1955, que discorre sobre o medo de si mesmo.
Piñera trabalhava com paradoxos. As inversões estão por todos os lados. A morte pode ser salvação e a vida pode ser morte. Num belo conto de 1965, "A Rebelião dos Enfermos", os sãos são convocados a dividir com os doentes as salas, enfermarias e quartos de um hospital, encenando doenças imaginárias para os verdadeiros moribundos. A morte, no entanto, só vem quando crêem que não sofrem de nada e já não sentem nem mesmo a dor dos próprios calos.
Piñera foi um calo no pé de uma revolução que terminou por repudiar tudo o que não se encaixava no seu modelo de comportamento, de arte e de literatura. Os paradoxos são a melhor arma contra os modelos. As artes só poderão continuar a existir como exaltação da invenção enquanto houver artistas e escritores como Piñera para contradizer o que eu, você, a revolução, as grandes ou as pequenas nações acham que as artes são ou devem ser.


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