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MARCELO COELHO
Os valores da "era Reagan"
Deve ser a regra com todos
os presidentes dos Estados
Unidos. Mas fiquei espantado
com o tempo que levou entre a
morte de Ronald Reagan e o seu
sepultamento. Os rituais fúnebres
tomaram quase uma semana inteira, e o corpo do presidente fez
uma peregrinação através de vastas extensões do território norte-americano, numa espécie de última campanha eleitoral -em
busca, como se diz, do sufrágio de
sua alma.
No fim de um longo parágrafo
em que recenseava os fatos da semana, uma publicação anticonservadora americana mal conteve sua satisfação sinistra ao noticiar numa única linha: "O presidente Reagan finalmente morreu". Será?
Os valores da "era Reagan" estão longe de ter perdido o vigor.
No princípio, aquilo parecia apenas um delírio reacionário, voltado para recuperar a auto-estima
americana, em baixa desde a
Guerra do Vietnã e de Watergate.
Baseava-se em propostas de duvidosa consistência: o corte de impostos e a criação de um escudo
espacial antimísseis, a chamada
"Guerra nas Estrelas".
Tudo vinha embrulhado numa
máscara sorridente, pronta a expressar simpatias pelo fundamentalismo bíblico, misturando ficção científica dos anos 50 com fitas de caubói e técnicas de relações públicas das mais antiquadas. Lembro-me de como parecia
fora de moda, nas primeiras fotos
de Reagan presidente, o lencinho
branco dobrado que ele usava no
bolso do paletó. A imagem que ele
projetava, naquele começo da década de 80, era de um passadismo
inviável, artificial e mortífero.
O próprio rosto de Ronald Reagan tinha algo de ressurrecto, de
empalhado; ator de relativo sucesso em outras décadas, o presidente recém-eleito parecia ter-se
levantado subitamente dos abismos da obscuridade, já bastante
envelhecido, mas tentando manter o charme dos bons tempos.
Um cronista americano referia-se, durante a campanha presidencial, a seus cabelos "precocemente alaranjados"; é como se o
uso da tintura capilar não levasse
em conta, no ator sexagenário,
que os filmes em preto-e-branco
eram coisa do passado.
Bem ao contrário, quase tudo
em Reagan apontava para o futuro, e seus cabelos tingidos simbolizavam uma intenção de permanência que os tempos atuais pouco fizeram para desmentir. Os
yuppies da década de 80 -aquele
Mickey Rourke de "Oito Semanas
e Meia de Amor", vendo as cotações de Wall Street piscando em
fósforo verde na tela do micro,
nos lábios um sorriso bailarino,
na janela uma Kim Basinger
pronta para uma fantasia light-
não são diferentes dos de agora.
Nada mais reaganiano (mas
durante o governo Reagan isso
ainda era um sonho distante, eu
acho) do que a imagem do Mc
Donald's em Pequim, ou de butiques Prada e Armani na Praça
Vermelha. Um mundo de alta
tecnologia e consumo de luxo, zunindo de competitividade, entretenimento, dureza e rapidez, foi
projetado como o cenário de um
filme de George Lucas; uma minoria afortunada passou a viver
dentro dele, estivesse na Califórnia, na Espanha, na Índia ou no
Brasil.
Esse mundo ilusório, criado durante os anos Reagan, persiste.
Persiste há tanto tempo que já se
transformou em realidade. Desconfio até que toda a nossa dependência do virtual, dos jogos de
computador, da holografia, do
encapsulamento em shoppings e
condomínios é conseqüência daquele fundamentalismo reaganiano: a confiança absoluta de
que se pudesse moldar a realidade a partir de uma ideologia econômica (a famosa "reaganomics") bastante frágil e simplista.
Mas me vejo falando do reaganismo em termos que seriam
igualmente apropriados ao desejo
marxista de criar uma sociedade
a partir de uns poucos princípios
incontestáveis. É talvez por isso
mesmo que o pensamento de esquerda se viu hipnotizado e rendido diante do conservadorismo
dos anos 80: a ideologia yuppie tinha justamente um apelo intelectual, uma aerodinâmica afetiva,
um charme de paradoxo e novidade com que os velhos manuais
do materialismo dialético não
mais conseguiam competir.
Claro, podemos dizer que o "rumo da história" (outra frase de
sabor marxista) era aquele mesmo e que tudo ia no sentido prenunciado por Reagan. Algumas
coisas, contudo, parecem não ter
dado certo. Teve pouco futuro,
por exemplo, a tentativa de reconstruir os valores religiosos e
comportamentais da família
wasp americana, com ensino bíblico, puritanismo sexual e boas
doses de aversão a quem não fosse
branco. Mesmo a Aids foi incapaz
de barrar o processo constante de
libertação sexual que vinha dos
anos 60; e, por mais que Reagan
fosse conservador nesse campo, a
geração yuppie não transigiria
com essa conquista.
Também já não me parece tão
certo o poder do "virtual" sobre o
"real". Talvez comece a fazer parte do passado a famosa crença,
proveniente dos anos 80, de que a
realidade foi substituída por simulacros manipuláveis via computador; entra igualmente em
descrédito a sensação correlata de
que os inimigos do sistema seriam
vencidos de forma "limpa", com a
mesma impalpável facilidade
com que o mundo comunista desapareceu.
Toquei outro dia nesse assunto;
temo ter incorrido no velho clichê
de comparar as guerras atuais a
videogames. O atual conflito no
Iraque, entretanto, é de uma materialidade atroz; corpos despedaçados, corpos nus, corpos torturados se amontoam, numa orgia
macabra e real. Tema para outro
artigo, quem sabe; e já é tempo de
deixar Reagan descansando em
paz.
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