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Crítica/artes cênicas/"Ketzal"
Companhia russa propõe enigma entre teatro e dança
Sem narrativa, grupo desestrutura o conceito de espetáculo e se apóia em imagens
SERGIO SALVIA COELHO
INÊS BOGÉA
CRÍTICOS DA FOLHA
Sem começo nem fim,
nem narrativa nem abstração, nem teatro nem
dança. Abrindo a programação
do Cena Estrangeira, da Secretaria de Estado da Cultura,
"Ketzal" (Pássaro), da companhia russa Derevo, faz um espetáculo de imagens fortes, sobrepondo cenas: das ruínas da
guerra às ruínas da psique, de
uma precária possível alegria às
riquezas essenciais de uma vida
animal e humana.
Como o sonho de um feto na
barriga da mãe, o cerimonial e o
pornográfico se misturam nessa mitologia larvária, dirigida
por Anton Adassinski. Xipófagos incestuosos expõem seus
desejos básicos: perversos-polimorfos, multiplicam nascimentos, cópulas e assassinatos,
testando ao limite a platéia,
com repetições exasperantes
de um universo em looping.
A ação do espetáculo se resolve nos corpos (ninguém fala).
Nem por isso deixa de haver
uma dramaturgia muito forte,
nutrida de inúmeras referências, com base em tradições
místicas de povos mexicanos.
Grotesco, mas sem angústia,
"Ketzal" faz pensar ao mesmo
tempo na commedia dell'arte e
no butô, no teatro-dança alemão e nos delírios do pintor renascentista Hyeronimus
Bosch.
As formas se instalam sofrendo a pressão do ambiente,
seja do recorte do cenário, seja
da luz e da fumaça, que cingem
de modo irregular a ação física
dos corpos praticamente nus,
num jogo entre superfície e
profundidade.
O cenário, com andaimes ao
fundo e baldes forrados de plástico, nas laterais, guardando a
água que se derrama pelo chão
nas cenas marcantes do fim, faz
um contraponto de "arte pobre" com os narizes aduncos de
carnaval veneziano, as varetas,
os manequins, as plumas, o
poste que afinal resta sozinho
no centro do palco coberto de
água e destroços.
É um mundo de violência e
desejo, habitado por seres radicalmente humanos, no sentido
estrito da palavra "radical": de
volta à raiz, reduzido às pulsões
primárias, que evoluem e regridem ao ritmo da música eletrônica. Mas também "radical" na
determinação rigorosa de uma
arte sem concessões, apadrinhada pelo espírito livre de
santo Artaud, que tanto bebeu
também em fontes mexicanas.
Uma cena memorável, entre
muitas: o palco vai sendo riscado pelos atores, com torso nus e
saias coloridas, que mudam de
cor pelos focos de luz. Outra: a
caminhada dos bichos-homens, estranhamente de quatro, formando mais uma entre
tantas sucessivas tribos que,
sem palavras, têm cada qual sua
linguagem de sons guturais.
Erguendo totens e demolindo tabus, os anfíbios performers da Derevo multiplicam
pastiches, como na dança paródica do "cossaco", com ironias
que devem ser ainda maiores
para uma platéia russa, e uma
primeira parte que, apresentada através do rasgo de uma pobre lona preta, parece um espetáculo de circo espiado por uma
criança sem ingresso.
Ao se exilar assim do sentido
do mundo, "Ketzal" desestrutura o próprio conceito de espetáculo, desafiando a platéia e
a crítica, que deve juntar esforços para explorar essas fronteiras. Repetitivo, ambíguo, provocando frouxos de risos aleatórios e irritações furiosas, não
é um espetáculo agradável, como qualquer arte inaugural.
Mas é revigorante, como todo
bom enigma.
KETZAL
Quando: hoje, às 21h, e amanhã, às
18h
Onde: teatro Sérgio Cardoso (r. Rui
Barbosa, 153, Bela Vista, tel. 0/xx/
11/3288-0136)
Quanto: R$ 10
Avaliação: bom
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