São Paulo, sábado, 16 de junho de 2007

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Crítica/artes cênicas/"Ketzal"

Companhia russa propõe enigma entre teatro e dança

Sem narrativa, grupo desestrutura o conceito de espetáculo e se apóia em imagens

SERGIO SALVIA COELHO
INÊS BOGÉA

CRÍTICOS DA FOLHA

Sem começo nem fim, nem narrativa nem abstração, nem teatro nem dança. Abrindo a programação do Cena Estrangeira, da Secretaria de Estado da Cultura, "Ketzal" (Pássaro), da companhia russa Derevo, faz um espetáculo de imagens fortes, sobrepondo cenas: das ruínas da guerra às ruínas da psique, de uma precária possível alegria às riquezas essenciais de uma vida animal e humana.
Como o sonho de um feto na barriga da mãe, o cerimonial e o pornográfico se misturam nessa mitologia larvária, dirigida por Anton Adassinski. Xipófagos incestuosos expõem seus desejos básicos: perversos-polimorfos, multiplicam nascimentos, cópulas e assassinatos, testando ao limite a platéia, com repetições exasperantes de um universo em looping.
A ação do espetáculo se resolve nos corpos (ninguém fala). Nem por isso deixa de haver uma dramaturgia muito forte, nutrida de inúmeras referências, com base em tradições místicas de povos mexicanos.
Grotesco, mas sem angústia, "Ketzal" faz pensar ao mesmo tempo na commedia dell'arte e no butô, no teatro-dança alemão e nos delírios do pintor renascentista Hyeronimus Bosch.
As formas se instalam sofrendo a pressão do ambiente, seja do recorte do cenário, seja da luz e da fumaça, que cingem de modo irregular a ação física dos corpos praticamente nus, num jogo entre superfície e profundidade.
O cenário, com andaimes ao fundo e baldes forrados de plástico, nas laterais, guardando a água que se derrama pelo chão nas cenas marcantes do fim, faz um contraponto de "arte pobre" com os narizes aduncos de carnaval veneziano, as varetas, os manequins, as plumas, o poste que afinal resta sozinho no centro do palco coberto de água e destroços.
É um mundo de violência e desejo, habitado por seres radicalmente humanos, no sentido estrito da palavra "radical": de volta à raiz, reduzido às pulsões primárias, que evoluem e regridem ao ritmo da música eletrônica. Mas também "radical" na determinação rigorosa de uma arte sem concessões, apadrinhada pelo espírito livre de santo Artaud, que tanto bebeu também em fontes mexicanas.
Uma cena memorável, entre muitas: o palco vai sendo riscado pelos atores, com torso nus e saias coloridas, que mudam de cor pelos focos de luz. Outra: a caminhada dos bichos-homens, estranhamente de quatro, formando mais uma entre tantas sucessivas tribos que, sem palavras, têm cada qual sua linguagem de sons guturais.
Erguendo totens e demolindo tabus, os anfíbios performers da Derevo multiplicam pastiches, como na dança paródica do "cossaco", com ironias que devem ser ainda maiores para uma platéia russa, e uma primeira parte que, apresentada através do rasgo de uma pobre lona preta, parece um espetáculo de circo espiado por uma criança sem ingresso.
Ao se exilar assim do sentido do mundo, "Ketzal" desestrutura o próprio conceito de espetáculo, desafiando a platéia e a crítica, que deve juntar esforços para explorar essas fronteiras. Repetitivo, ambíguo, provocando frouxos de risos aleatórios e irritações furiosas, não é um espetáculo agradável, como qualquer arte inaugural. Mas é revigorante, como todo bom enigma.


KETZAL
Quando:
hoje, às 21h, e amanhã, às 18h
Onde: teatro Sérgio Cardoso (r. Rui Barbosa, 153, Bela Vista, tel. 0/xx/ 11/3288-0136)
Quanto: R$ 10
Avaliação: bom


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