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CONTARDO CALLIGARIS
Antidepressivos, aspirinas e urubus
Os antidepressivos são uma espécie de aspirina psíquica, capaz de aliviar qualquer tristeza?
A FEBRE se manifesta numa
longa lista de moléstias: gripe,
infecções bacterianas, insolação e por aí vai. Em todos esses casos, a aspirina combate a febre, mas
não cura a enfermidade em que ela
se manifesta. Para isso, cada enfermidade tem remédios próprios
(quando tem): antibióticos, sulfamídicos, cortisona etc.
Pergunta: segundo a psiquiatria,
os antidepressivos atuais são um remédio específico para uma moléstia
chamada "depressão"? Ou são uma
espécie de aspirina psíquica, capaz
de aliviar a tristeza e a morosidade
que se manifestam numa variedade
de situações de vida e de quadros clínicos? Ou será que podem ser as
duas coisas?
Pois bem, graças a um amigo, Célio G. Marques de Godoy, que me indicou o artigo, li uma pesquisa publicada recentemente no "New England Journal of Medicine" (2007,
vol. 356, 17). A pesquisa testa a "eficácia do tratamento auxiliar com
antidepressivos na depressão de pacientes bipolares".
Uma explicação: na clínica psiquiátrica, os transtornos bipolares
são um quadro bem distinto da depressão. Neles, o sujeito alterna fases depressivas com fases de euforia
maníaca; as fases depressivas são
mais longas do que as maníacas, mas
a alternância é crucial para o diagnóstico. Em suma, um bipolar em
fase depressiva se parece com um
deprimido, mas isso não significa
que ele sofra da mesma "moléstia".
Na pesquisa, trata-se de saber se,
num quadro diferente da depressão,
os antidepressivos podem funcionar
ou não como uma aspirina que aliviaria qualquer tristeza. A resposta,
no caso dos transtornos bipolares, é
negativa: os antidepressivos não
funcionam como a aspirina com a
febre. No entanto, eis o conselho paradoxal dos pesquisadores: se um
paciente bipolar já estiver tomando
antidepressivos, melhor que continue, embora a pesquisa mostre que
eles não parecem aliviar sua fase depressiva. Por que a recomendação?
Pois é, literalmente, porque NUNCA SE SABE.
Essa incerteza faz a felicidade dos
urubus, que faturam com o uso dos
antidepressivos como se fossem aspirina. Mas ela é também o retrato
fiel do estado de nossa clínica e de
nossa ciência. Vamos lá:
1) Os antidepressivos atuais foram
descobertos quando alguém administrou um derivado da hydrazina a
pacientes tuberculosos. O efeito
inesperado (e único) foi que eles ficaram mais alegres.
2) Mais tarde, descobriu-se que a
mesma substância aumentava (pouco importa como) a quantidade de
um neurotransmissor no cérebro (a
serotonina).
3) Supondo que essa alteração fosse responsável pelo bom humor dos
pacientes tuberculosos, decidiu-se
experimentar o uso de substâncias
análogas em pacientes deprimidos.
4) Para isso, foi necessário construir um padrão de comportamentos e afetos que identificassem os
deprimidos; nasceu assim "a depressão". De fato, entre 30 e 40% dos sujeitos que correspondem a esse padrão se beneficiam com o uso dessas
substâncias.
5) Por que não todos? a) A definição padrão da depressão é comportamental, afetiva e discursiva, não
química, pois é difícil verificar o nível de serotonina no cérebro das
pessoas; b) portanto, é possível que
muitas depressões sejam conformes
ao padrão comportamental e afetivo
estabelecido, mas que se expressem
por alterações químicas diferentes
da insuficiência de serotonina; c)
conclusão: reagiriam positivamente
a antidepressivos só aqueles deprimidos que expressam quimicamente sua depressão pela diminuição da
serotonina no cérebro. Como identificá-los? Só experimentando.
6) Assim como haveria depressões
que não se expressam pela insuficiência da serotonina, é também
possível que haja, fora da depressão,
tristezas e morosidades que se expressem por uma falta de serotonina. Nesses casos, os antidepressivos
ajudariam. Como identificá-los? Só
experimentando.
Em suma, o uso dos antidepressivos é empírico. Compara-se à administração de antibióticos específicos
diante de um quadro no qual nenhuma cultura bacteriana pudesse nos
dizer se o paciente é infectado ou
não pela bactéria que o antibiótico
está atacando.
É uma razão para condenar os antidepressivos? Não. Mas é bom saber que nossa ciência e nossa clínica
os administram balbuciando.
Correção da coluna passada:
"Goldfinger" não é o primeiro James Bond com Sean Connery; é o segundo. Agradeço os leitores que me
assinalaram o erro.
ccalligari@uol.com.br
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