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"VIDA, JOGO E MORTE DE LUL MAZREK"
Kadaré encontra a ficção pronta no cotidiano albanês
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
A Albânia , um dos menores
e seguramente o mais atrasado dos países europeus, depois de
uma história rocambolesca e sanguinariamente balcânica, fechou-se, conduzida por seu líder Enver
Hodja, num isolacionismo quase
absoluto que durou décadas. O
regime comunista estabelecido
no final da Segunda Guerra Mundial se opôs primeiro ao da Iugoslávia vizinha, rompeu em seguida
com o da União Soviética e cortou
finalmente seus vínculos com a
China. O que lhe permitiu fazê-lo
foi sua posição geográfica e irrelevância estratégica.
A combinação de atraso, idéias
utópicas e isolamento a transformou num paradoxo vivo: uma sociedade arcaica que se julgava a
vanguarda do progresso. Do ditador ao mais humilde súdito, todos
viviam nesse mundo de fantasia,
uma fantasia que seguiu sendo levada a sério mesmo quando os
habitantes das outras nações comunistas já eram capazes de ler
sem esforço os fatos nas entrelinhas dos discursos oficiais.
Ismail Kadaré encontrou a ficção pronta no dia-a-dia de sua Albânia natal e, começando a escrever ainda sob a ditadura, converteu-se no principal cronista desse
prolongado jogo de espelhos. De
início, e por razões óbvias, ele preferiu tematizar o passado seguro,
mas, mesmo quando o abordava,
o que mais o atraía era a fantasmagoria, os limites tênues entre o
real e o modo como um regime
tão totalitário quanto primitivo o
apresentava e representava.
"Vida, Jogo e Morte de Lul Mazrek", escrito entre 2001 e 2002, ou
seja, quando o antigo regime estava devidamente enterrado, retrata
exatamente sob esse prisma os
anos crepusculares da ditadura.
Não é à toa que seu protagonista é
um rapaz provinciano que acaba
de ser rejeitado pela escola de artes dramáticas da capital. Antes
de ter tempo de afundar em sua
frustração, ele é convocado para o
serviço militar. Por sorte, acaba
sendo enviado a um posto de
fronteira nas vizinhanças do mais
elegante balneário, ao sul do país.
Sua tarefa, a de impedir que
seus conterrâneos fujam para a
Grécia, algo que o ditador idoso e
doente toma como ofensa pessoal, é recompensada pela possibilidade de visitar o balneário, beber café expresso, conhecer belas
garotas. Ele acaba se envolvendo
com uma jovem espiã ou delatora
vinda de Tirana cujo trabalho
consiste em usar seu corpo para
descobrir, entre os veranistas,
quais são os que planejam fugir.
E, para continuar sua ligação com
ela, Mazrek aceita também participar de trama destinada a desencorajar os fugitivos potenciais.
O enredo do romance sintetiza
no seu desenrolar a decadência de
um regime em que a própria repressão se reduzira a um tipo de
encenação, com oficiais buscando
agradar ministros, e estes, o ditador. Tal encenação, por farsesca
que seja, envolve, no entanto, o
risco de que os atores tenham de
amargar mais do que apenas
vaias. Seu pano de fundo, além
das ruínas de um teatro grego, são
os ecos de uma antigüidade remota e heróica que, embora mal
lembrada e menos compreendida
pelos personagens, persiste fragmentariamente em sua memória
coletiva e, sem que eles se dêem
conta disso, pesa decisivamente
sobre suas ações.
Vida, Jogo e Morte de Lul Mazrek
Autor: Ismail Kadaré
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (págs. 232)
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