São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

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"VIDA, JOGO E MORTE DE LUL MAZREK"

Kadaré encontra a ficção pronta no cotidiano albanês

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

A Albânia , um dos menores e seguramente o mais atrasado dos países europeus, depois de uma história rocambolesca e sanguinariamente balcânica, fechou-se, conduzida por seu líder Enver Hodja, num isolacionismo quase absoluto que durou décadas. O regime comunista estabelecido no final da Segunda Guerra Mundial se opôs primeiro ao da Iugoslávia vizinha, rompeu em seguida com o da União Soviética e cortou finalmente seus vínculos com a China. O que lhe permitiu fazê-lo foi sua posição geográfica e irrelevância estratégica.
A combinação de atraso, idéias utópicas e isolamento a transformou num paradoxo vivo: uma sociedade arcaica que se julgava a vanguarda do progresso. Do ditador ao mais humilde súdito, todos viviam nesse mundo de fantasia, uma fantasia que seguiu sendo levada a sério mesmo quando os habitantes das outras nações comunistas já eram capazes de ler sem esforço os fatos nas entrelinhas dos discursos oficiais.
Ismail Kadaré encontrou a ficção pronta no dia-a-dia de sua Albânia natal e, começando a escrever ainda sob a ditadura, converteu-se no principal cronista desse prolongado jogo de espelhos. De início, e por razões óbvias, ele preferiu tematizar o passado seguro, mas, mesmo quando o abordava, o que mais o atraía era a fantasmagoria, os limites tênues entre o real e o modo como um regime tão totalitário quanto primitivo o apresentava e representava.
"Vida, Jogo e Morte de Lul Mazrek", escrito entre 2001 e 2002, ou seja, quando o antigo regime estava devidamente enterrado, retrata exatamente sob esse prisma os anos crepusculares da ditadura. Não é à toa que seu protagonista é um rapaz provinciano que acaba de ser rejeitado pela escola de artes dramáticas da capital. Antes de ter tempo de afundar em sua frustração, ele é convocado para o serviço militar. Por sorte, acaba sendo enviado a um posto de fronteira nas vizinhanças do mais elegante balneário, ao sul do país.
Sua tarefa, a de impedir que seus conterrâneos fujam para a Grécia, algo que o ditador idoso e doente toma como ofensa pessoal, é recompensada pela possibilidade de visitar o balneário, beber café expresso, conhecer belas garotas. Ele acaba se envolvendo com uma jovem espiã ou delatora vinda de Tirana cujo trabalho consiste em usar seu corpo para descobrir, entre os veranistas, quais são os que planejam fugir. E, para continuar sua ligação com ela, Mazrek aceita também participar de trama destinada a desencorajar os fugitivos potenciais.
O enredo do romance sintetiza no seu desenrolar a decadência de um regime em que a própria repressão se reduzira a um tipo de encenação, com oficiais buscando agradar ministros, e estes, o ditador. Tal encenação, por farsesca que seja, envolve, no entanto, o risco de que os atores tenham de amargar mais do que apenas vaias. Seu pano de fundo, além das ruínas de um teatro grego, são os ecos de uma antigüidade remota e heróica que, embora mal lembrada e menos compreendida pelos personagens, persiste fragmentariamente em sua memória coletiva e, sem que eles se dêem conta disso, pesa decisivamente sobre suas ações.


Vida, Jogo e Morte de Lul Mazrek
    
Autor: Ismail Kadaré
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (págs. 232)



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