São Paulo, sexta, 16 de outubro de 1998

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GASTRONOMIA
Fui à santa Tereza D'Ávila, mas ela não me ouviu

NINA HORTA
Colunista da Folha

Há anos que queria ler Tereza D'Ávila, a fundadora do primeiro carmelo, a escritora, a pedagoga, a poeta, a santa (1515-1582). Neste fim-de-semana encontrei para comprar a obra completa, um calhamaço de 1.800 páginas das Edições Loyola.
Fui me isolar numa "ilha deserta" com certeza absoluta e ignorância crassa que sua espiritualidade se expressaria em imagens e linguagem de comida, muito próprias a esta página. Fome de Deus, doce leite que nutre sabor de mel.
Errei. Tereza D'Ávila não é brinquedo. Difícil de ser lida no meio da superfluidade do século 20, muita areia para nosso caminhão.
É uma louca, uma fortaleza, uma força descabelada, uma cachoeira facetada, um poço de LSD, uma viciada em Deus. Não quer saber do mundo, quer chegar ao total desprendimento. Precisa e ponto.
Uma vez ou outra considera o divino como alimento. "De quantas maneiras podemos considerar o nosso Deus! Que variedade de manjares podemos fazer dele. Ele é maná que tem o gosto de acordo com o que queremos que tenha."
E no meio das palavras, de tentar palavras de êxtase, de gritos, de desmaios, de folia de amor, percebe-se que no convento há uma hortinha onde as monjas plantam pepinos e colhem suas couves.
Agradece em carta -e que boas e políticas e singelas são suas cartas- uma manteiga ótima que recebeu e da qual faz bom proveito. E louva também os marmelos ganhos, bonitos, bons para as grandes caixas de marmelada.
Tereza D'Ávila não comia carne, obedecia junto à sua ordem o jejum de oito meses, na época em que o jejum era fundamental ao modelo de santidade feminina. Era na oração, na eucaristia, no corpo e sangue de Cristo que podiam se fartar.
Santa Tereza não dormia sem antes vomitar Anorexia, Mirabilis, o controle do apetite ligado à piedade e à crença. Santa Tereza, entregue a Deus, não se preocupa com o pão de cada dia, como nós. Sabe que ele virá pela mão do amante. Quer beijar a Deus na boca e nutrir-se no seu peito.
Leitores, repito, errei. Amém.



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