São Paulo, sexta, 16 de outubro de 1998

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Almodóvar - Carne Trêmula


Criador de roteiros originais e peculiares, o diretor espanhol exibe hoje, na 22ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, sua primeira obra adaptada de um livro


SUZI FEAY
do "Independent on Sunday"

Até hoje, Pedro Almodóvar escreveu e dirigiu todos os seus filmes. Quem mais poderia imaginar mulheres armadas que se vestem como Jackie Onassis ("Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos"), estupradores em fuga ("Kika") e donas-de-casa assassinas ("Que Fiz Eu Para Merecer Isso?")?
Agora, pela primeira vez, ele adaptou um livro. Do sombrio "Live Flesh", da inglesa Ruth Rendell, uma história de psicoses britânicas, Almodóvar fez "Carne Trêmula", um filme cheio de sangue, ciúme, machismo e paixão na sua amada Madri.
"Não sou um bom adaptador", confessa o diretor. "Brincando com as palavras, eu poderia dizer que sou um adaptador inadaptado." No livro de Rendell, um homem suspeito de estupro, armado com o revólver de seu tio, é perseguido por jardins da zona oeste de Londres, finalmente chegando a uma casa e tomando como refém a jovem que encontra lá dentro.
Em pânico, ele atira e deixa paralítico o heróico policial que entra na casa pela porta. Depois, é perversamente consumido por rancor pelo homem de quem ele destruiu a vida e a espinha. Dez anos depois, ao ser solto, ele procura o policial.
No filme, o jovem, Victor, é um inocente. Ele vai para a casa de uma mulher com quem havia transado na semana anterior numa danceteria. Elena, viciada em drogas, esqueceu-se completamente dele e espera nervosamente pelo seu traficante. Dois policiais chegam, alertados pela gritaria; uma arma dispara e, após o trágico acidente, Elena muda de vida e se casa com o policial paralítico, enquanto Victor vai para a prisão.
² Perdedor
Por que Almodóvar mudou tanto o personagem principal? "Eu não queria que Victor fosse um estuprador, não queria um filme com um protagonista assim. Faz mais meu gênero a história sobre a fatalidade para mostrar o oposto -alguém completamente inocente. Foi uma noite ruim para todo mundo, e todos perderam. Mas ele perdeu mais que os outros."
O "novo" Victor, endurecido pelos seus anos na prisão, mas ainda esperançoso, otimista e apaixonado, é interpretado pelo desconhecido Liberto Rabal. "O nome Rabal é muito famoso na Espanha. Liberto é neto de Francisco Rabal, que, junto com Fernando Rey, era o nosso mais famoso ator internacional antes de Antonio Banderas. Liberto me lembra muito o Antonio. Acho que Antonio é mais talentoso: a mais incrível capacidade natural que já encontrei. Liberto não tem essa capacidade extraordinária, mas tem muito talento e parece tão bom quanto Antonio, com a mesma intensidade: muito masculino, mas sem ostentação. Agora que não posso mais trabalhar com Antonio..."
Você não pode pagá-lo agora? "Não, acho que não. Estávamos conversando sobre fazermos algo juntos e eu disse: "Mas Antonio, seu salário agora é o orçamento de um filme meu na Espanha!"
O "macho" Javier Bardem, do filme "Jamón, Jamón", de Bigas Luna, confina sua estrutura de touro numa cadeira de rodas na maior parte do filme. Como um minotauro inválido, ele traz um senso de ameaça contida no papel de David, o policial baleado.
Bardem treinou oito horas por dia, durante dois meses, e aprendeu não só a manipular a cadeira de rodas com perfeição, mas a jogar basquete nela: após o acidente, David vira uma estrela do esporte.
Uma das boas sacadas de "Carne Trêmula" é que o filme pára o tempo que for necessário para mostrar como demora para David manobrar-se dentro de seu carro ou casa.
"Foi uma decisão nossa. Mas, de qualquer forma, Javier faz tudo tão rapidamente que é incrível. Ele é um esportista. Entre os deficientes físicos, eles são uma elite. Descobrir esse mundo foi fantástico, porque eles dão a impressão de que podem fazer quase tudo, não têm do que reclamar. Ao mesmo tempo, eu não queria transformá-lo num herói."
² Culpa
O terceiro vértice do triângulo é a fantasmagórica Elena, uma menina mimada e rica que transforma sua vida com trabalhos de caridade e devoção a David até que Victor insinua uma volta à sua vida. Ela é representada pela atriz italiana Francesca Neri.
"Claro que na Espanha tenho atrizes da idade dela, mas o complexo de culpa que é tão importante para o papel... O rosto de Francesca era perfeito para isso. É uma garota bonita, mas com um tipo de distância, com sua pele alva, como que vampirizada pela culpa. É a personagem feminina mais triste que já escrevi. E a mais pálida!"
E, é claro, tudo se passa em Madri, e não no bairro londrino de Acton, da escritora Rendell. "Eu sinto muita responsabilidade porque já encontrei estrangeiros nas ruas de Madri que me dizem que foram até lá por causa dos meus filmes. Não sei se eles esperam ser estuprados, ou drogados, ou..."
Não há uma palavra para "workaholic" em espanhol, mas é obviamente o que ele é. "Sou viciado em trabalho, sim. Descobri que isso também é uma forma de escapar da vida. Preciso estar sempre com um caderninho. Não é trabalho, apenas fazer alguma coisa."
² Nada assumido
A perversidade de seus primeiros trabalhos não existe em "Carne Trêmula". Talvez seja seu filme mais certinho. Como ele se sente sendo descrito como um diretor gay? Há um longo silêncio.
"Você sabe, ninguém diz "um filme de gordo por Orson Welles'. Você nunca diz "a monarquia heterossexual do Reino Unido'. Algo que eu absolutamente odeio é "o diretor gay assumido Pedro Almodóvar'. Não sou nada assumido! Assumo só a chateação com isso. Assumo fúria com isso."
"As pessoas pensam que é algo atraente. Não. Não sou gay abertamente e é claro que não sou um diretor gay. Sou um diretor do sexo masculino. Há uma sensibilidade gay, mas isso não é só coisa de artistas gays. Os filmes não têm qualquer tipo de sexualidade."
"Não é porque eu queira esconder algo, não mesmo. Mas essa é a mais homófoba das expressões. Acho que é muito norte-americana. Estou certo de que eles gostariam de colocar isso em seu passaporte -sua orientação sexual." "Na Espanha nunca falamos sobre isso. É falta de educação. E, em geral, não escondemos nada. O que não gosto é que no Reino Unido ou nos EUA as pessoas se insinuam com aquela de "como é mesmo o nome do seu namorado?'. É uma falta de respeito."
"A Motion Picture Association of America censurou "Áta-me!', que é uma história romântica. Eles proibiram a sexualidade, uma cena de amor entre um casal que se ama. Mas será que eu tenho que falar para a imprensa do que faço na cama? Para uma pessoa como eu, que é muito livre, sincera na vida e nos filmes, ir para os Estados Unidos seria muito desagradável."
²


Tradução: Denise Bobadilha.



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