São Paulo, sexta, 16 de outubro de 1998

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CRÍTICA
Cineasta se afasta do bizarro e realiza filme humano e intenso

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Após a exibição especial de "Carne Trêmula" no último Festival de Gramado, em agosto passado, vários críticos saíram do cinema com lágrimas nos olhos.
Uns garantiam que era por motivos "estritamente cinematográficos" ("Não é todo dia que se vê cinema de verdade"), outros culparam o clima volúvel de Gramado ("Não há quem não fique resfriado"), outros ainda revelaram "saudades de Madri".
Confesso que chorei por todos esses motivos e mais um: a intensa, quase dolorosa humanidade dos personagens de Pedro Almodóvar.
Como em "Áta-me" e "A Flor do Meu Segredo", o entrecho de "Carne Trêmula" (inspirado livremente em livro de Ruth Rendell) é, sem nenhuma dúvida, o de um melodrama.
O jovem delinquente Victor (Liberto Rabal) invade o apartamento de Elena (Francesca Neri), a bela e drogada filha do cônsul italiano, com a qual ele tinha transado numa festa de embalo, e é surpreendido pela polícia.
Na confusão, o policial David (Javier Bardem) é baleado na coluna, e Victor vai para a cadeia.
Passam-se dois anos. Victor sai da prisão e descobre que Elena está casada com David, agora um astro do basquete nas Olimpíadas de Paraplégicos de Barcelona. Inconformado, Victor vai procurá-la e instaura um trágico e sangrento triângulo amoroso.
O filme, aliás, já começa em sangue. A primeira sequência, uma das mais lindas do cinema recente, mostra o nascimento de Victor num ônibus vazio, numa Madri igualmente vazia, numa noite do início dos anos 70, ou seja, em plena ditadura franquista.
Quem viu a cena jamais esquecerá o momento em que a mulher que ajuda a mãe de Victor no parto levanta o bebê até a janela do ônibus e lhe diz: "Mira. Mira Madrid".
A partir daí, Almodóvar constrói um drama denso e concentrado, distante da dispersão (deliciosa, embora) de seus primeiros filmes.
Claro que ainda estão presentes o humor iconoclasta, a trilha sonora cafona, a cenografia extravagante (bastante atenuada), um ou outro personagem estranho.
Mas não é mais o bizarro que dá o tom, e sim o humano, demasiado humano, de cada um.
Os diálogos de Almodóvar estão cada vez mais enxutos; o ritmo, cada vez mais cerrado; os planos, sóbrios, mas vibrantes e carregados de significação. Não se joga mais conversa -nem imagem- fora.
Nesse seu processo de depuração o cineasta espanhol parece ter encontrado um parceiro perfeito no diretor de fotografia brasileiro Affonso Beato, que trabalha com ele desde "A Flor do Meu Segredo".
A utilização da luz e das cores para efeitos dramáticos e narrativos atinge em "Carne Trêmula" um grau dificilmente superável.
Por fim, cabe destacar o "faro" de Almodóvar para escalar os atores certos nos lugares certos.
Liberto Rabal é uma espécie de Antonio Banderas antes da fama e da afetação.
Javier Bardem, um dos rostos mais expressivos do cinema atual, transmite com perfeição a sensação de uma energia contida e prestes a explodir.
Francesca Neri, linda como sempre, pode mostrar aqui a extensão de seus recursos, compondo uma personagem quase bíblica, que se santifica duas vezes ao longo do filme -a primeira pela compaixão, a segunda pelo desejo.
No universo de Pedro Almodóvar, não há contradição entre esses dois termos.
²
Filme: Carne Trêmula Produção: Espanha, 1997 Direção: Pedro Almodóvar Com: Liberto Rabal, Javier Bardem, Francesca Neri Quando: hoje, às 23h, no Maksoud Plaza (al. Campinas, 150, tel. 011/253-4411)



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