São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 2003 |
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FERNANDO BONASSI Porque matamos nossos pais
Porque a velocidade tende a
abalar o equilíbrio dos tempos. Porque o espaço não se comporta como antigamente e foi cercado de interesses. Porque os interesses são maiores que a satisfação e a satisfação nos mete medo.
Porque a exaltação do medo é
igualmente erótica. Porque a
energia é magnética e os opostos
se retraem. Porque há mais oposição na igualdade do que sonham
nossas consciências pesadas. Porque ninguém tem culpa. Porque
nos enchem o saco. Porque nos
deixam levar. Porque perdemos o
rumo e, quando vamos perguntar, vossa ignorância nos assusta.
Porque os jogos não domam nossos impulsos. Porque não sabemos o que fazer de nossa sofreguidão. Porque as pistas estão desencontradas, os marcos foram embaralhados e as lições não fazem
sentido. Porque aprendemos o
que não nos serve. Porque aquilo
que nos serve não pode ser aprendido nos seios maternos. Porque
há um incômodo moderno nas
boas causas de família. Porque a
família se reúne mas não se encontra. Porque os encontros são
furtivos e recheados de gagueira
ou porrada, quando não os dois.
Porque a inocência está acabando. Porque a violência é um princípio. Porque é preciso crescer.
Porque é preciso vencer. Porque é
essa a pior herança com a qual temos que nos haver. Porque o preço da vitória pode ser alto demais.
Porque haverão de nos incomodar menos. Porque a renda é mal
distribuída e as gerações são mal-acostumadas. Porque o conforto e
a serenidade suspeita de alguns é
proporcional ao sofrimento dos
muitos outros intranquilos. Porque é preciso enfrentar os mistérios do mercado e conhecer os valores das bolsas escondidas. Porque os armários fervem de contratos e as apólices dormem apetitosas nas gavetas. Porque as armas dos crimes se expõem desavergonhadas nas paredes. Porque
Deus prefere ensinar a pescar por
linhas tortas a nos entregar desde
logo o peixe da razão. Porque a
razão pode ser um mistério doloroso. Porque há prazer nisso tudo.
Porque o prazer se tornou incomunicável. Porque os cientistas
deram pra multiplicar as explicações. Porque a natureza está sem
jeito, tornando as previsões imprevisíveis. Porque o descontrole
contagia os púberes e seus púbis.
Porque as drogas permitidas nos
viciam de idéias. Porque podemos
dançar a qualquer momento.
Porque a História é essa mesma e
deu pra repetir-se coberta de floreios. Porque nunca foi tão difícil
saber pra que lado atirar... Porque somos vaidosos. Porque temos espinhas. Porque devemos
superá-los, porque queremos escondê-los. Porque somos egoístas.
Porque o estigma também nos
qualifica entre mortos e feridos.
Porque as soluções justas são postergadas. Porque o julgamento é
lerdo e a pena é curta. Porque os
corpos de delito culpam a burocracia das instituições e as instituições se defendem com salários
extorsivos. Porque os diplomatas
e os generais costumavam estar
protegidos das bombas. Porque
temos pressa. Porque temos asco.
Porque é uma prova de amor terrível. Porque o amor e a desconfiança estimulam-se reciprocamente. Porque os heróis são
amestrados e os vilões são instruídos. Porque os lares foram destruídos e os laços foram apertados
nos pescoços dos mais fracos. Porque precisamos dar um livro,
uma reportagem, uma novelinha
que seja, se não pudermos mais
plantar qualquer esperança numa árvore. Porque estamos cansados de esperar a esperança fincar nossas raízes e morrer por último. Porque somos calculistas e a
indenização não é lá essas coisas.
Porque o filho do peixe é limitado
geneticamente. Porque somos psicopatas sociais e algemas nos excitam a imaginação. Porque a
corda roída nessa vida parece um
elástico que afina quando estica.
Porque é preciso puxar um cabo
de guerra. Porque as palavras se
perderam das coisas e tudo parece
brincadeira. Porque não pensamos ser capazes. Porque não pensamos. Porque temos preguiça.
Porque pensamos sempre nisso.
Porque é preciso alguma estratégia e a facilidade da burrice é indescritível. Porque todos estamos,
de um modo ou de outro, "evoluindo para o óbito", conforme
atestam os eufemismos dos relatórios médicos. Porque o sarcasmo é maior que a gratidão e a ironia mais tolerável que o senso de
humor. Porque o bom senso dá no
que deu. Porque deram os sinais
de sua irresponsabilidade ao nos
colocarem neste mundo de sem-vergonhice. Porque não somos
melhores que os piores dos assassinos, ainda que nos tenham criado por baixo das saias protetoras.
Porque há silicone onde deveria
haver sangue, há sangue onde deveria haver remédio e há remédio
onde deveria haver solução. Porque nos empurram nas barrigas e
nos lançam em competições. Porque não somos bons atletas remunerados. Porque não damos lucro. Porque somos cínicos. Porque
somos coitados. Porque os modelos são menos libidinosos que as
modelos. Porque a beleza pode estar escondida em todas as coisas,
por feiosas que sejam, por serem
de Deus. Porque há os que preferem a certeza do inferno na terra
ao risco do Paraíso no céu. Porque desse trabalho todo a população já está bem cheia, ainda que
possa estar procurando qualquer
coisa pra fazer entre os contínuos
desempregos. Porque o salário é
desse tamanho. Porque a expectativa também. Porque a aposentadoria apresenta as melhores garantias. Porque a experiência não
salva quem quer que seja. Porque
a segurança de quem se salva
continua sendo mínima. Por puro
acaso. Por um detalhe. Uma mania. Porque as posições são mesquinhas e os conceitos são medíocres, mas, principalmente, porque
a paz verdadeira há de custar
mais caro do que esse chapéu passado entre uns poucos bem intencionados.
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