São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

As vidas não vividas


Em livro, Lessing conta como poderia ter sido a vida dos pais sem a guerra no caminho

O ANO caminha para o fim, e a imprensa, em valsa conhecida, começa o seu ajuste de contas. Política, filmes, música, livros. Fico pelos livros: 2008 teve boas ou más colheitas?
Deitado no sofá, vou deambulando pelas páginas especializadas. Leio títulos. Leio nomes. Mas não encontro o título e o nome do único livro de 2008 que eu salvaria de uma casa em chamas.
O livro intitula-se "Alfred and Emily" (editora 4th Estate, 274 págs.), foi escrito por Doris Lessing e, pelo visto, desapareceu dos radares. O caso não espanta: quando Lessing, dois anos atrás, recebeu o Prêmio Nobel da Literatura, um conhecido meu, crítico literário, perguntava, seriamente, se Lessing ainda era viva.
Doris Lessing ainda é viva. E, para desespero dos apedeutas, é também a melhor escritora em língua inglesa, apesar de não dar show nos circos midiáticos.
"Alfred and Emily" é uma história de família. Nesse caso, a história dos pais de Doris Lessing, Alfred Tayler e Emily McVeagh. A história não é propriamente feliz e, como dizia o poeta Philip Larkin no verso que lhe custou o título de "sir" ("They fuck you up, your mum and dad"), pais infelizes não geram crianças risonhas.
O pai Alfred sonhava em ser um "gentleman farmer" na Inglaterra eduardiana: viver no campo e cultivá-lo. A mãe Emily sonhava em trabalhar como enfermeira em um hospital de Londres e se casar com um médico da capital. Mas a história do século 20 não foi bondosa para a Europa. Em 1914, o continente marchava euforicamente para as trincheiras. A Primeira Guerra Mundial seria também a última. A guerra para terminar com todas as guerras, como se dizia.
A Primeira Guerra não acabou com todas as guerras. Pelo contrário: deixou as sementes para a guerra posterior, ainda mais mortífera e insana. Deixou 19 milhões de mortos, 21 milhões de feridos.
E, no caso de Doris Lessing, determinou o destino dos seus pais: Alfred acabaria por perder uma perna nas trincheiras e, no limite, a última réstia de alegria ou de serenidade. Morreria prematuramente, assombrado pelos fantasmas dos colegas que não regressaram mais. E o médico londrino com que Emily sonhava em se casar terminaria no fundo do canal da Mancha, destroçando-a emocionalmente. "Alfred and Emily" é a história de duas infelicidades partilhadas.
Mas Doris Lessing não se limita a contar como foi. Em gesto de superior inteligência narrativa, a escritora conta como poderia ter sido a vida dos dois se a Primeira Guerra Mundial não se tivesse intrometido nos seus destinos.
Nessa história virtual, Alfred acabaria os seus dias exatamente como os sonhara: no campo inglês, com a alma e o corpo intactos. Emily prosseguiria a sua carreira médica em Londres, teria um casamento (breve) com o homem da sua vida e dedicaria os seus esforços finais a educar e a alimentar os mais pobres do East End. Não se casariam; seriam meros conhecidos, respeitosos conhecidos.
E, se é verdade que nenhuma vida está isenta de infelicidades, as infelicidades de Alfred e Emily seriam, pelo menos, infelicidades humanas, cotidianas, banais; não seriam o produto desumano de uma guerra que ceifou uma geração inteira.
E Doris Lessing? Qual o papel para a escritora na história virtual dos seus pais?
Essa talvez seja a pergunta fundamental. Porque, lendo "Alfred and Emily", entendemos que a possibilidade de vidas mais suportáveis para os dois não se explica por compaixão. Doris Lessing não pretende apenas oferecer aos progenitores a vida que eles não tiveram. "Alfred and Emily" não é um livro de compensação literária movida por amor filial. Não existe amor filial.
Em Doris Lessing existe apenas tristeza e mesmo ódio pelas figuras amargas em que os pais se transformaram. Em que os pais a transformaram. Pais infelizes não geram crianças risonhas, lembram?
Uma vida alternativa para Alfred e Emily seria, no fundo, uma vida alternativa para a própria Doris Lessing. Salvando os dois, a escritora acredita que se salva a si mesma; que se salva de todas as agruras que teve como herança.
Na realidade e na ficção, somos também o que os outros foram: o reflexo humano dos seus vícios, das suas virtudes. Dos seus feitos e frustrações. E como negar que as nossas vidas seriam um pouco mais diferentes se os nossos pais tivessem sido um pouco mais felizes?


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