São Paulo, quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

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NINA HORTA

A teimosia em escrever sobre comida


Por uns 20 anos, deixei os romances, fiquei gostando de biografias, aprendi a arrumar livros na estante


VAMOS RAPIDINHO que Rui longus, vita brevis. Como é que uma pedagoga vira suco? Ou vira "pâté de campagne aux herbes"? Que livros ela leu?
Entrei na faculdade como Madame Bovary rediviva. Com a cabeça fervilhante de novelas de cavalaria, um marido e três filhos. E o choque foi terrível. A linguagem da literatura contra a linguagem acadêmica.
Passei uns seis anos em rebelião constante e ineficaz contra autores de jargão obscuro. (Eu achava que forma era conteúdo, eles achavam que não, e até talvez tivessem razão.) Como um Kant não entendido pode ser chatérrimo! Urrei contra palavras como "epistemologia".
Ontem a passadeira viu um livro do meu neto sobre um baú. "O Significado do Significado." Pois se encantou. "Adorei esse nome!", e riu muito. Eu também ri. Tudo como dantes no quartel d'Abrantes.
Excelentes professores versus alunos sem noção nem tempo para assimilar o mundo. Fusion food fajuta. A Paideia, Aristóteles, Platão, Dewey, Spencer, Bergson, Scheller, Poincaré, Saussure, Durkheim, Weber, Wittgenstein, Marx, Derrida, Bachelard, Lévi-Strauss, Chomsky, Nietzsche, Freud, Melanie Klein, alhos com bugalhos, exames, provas, dissertações, o inconcebível. Estudar para ter nota, ler sobre o autor, pois o autor você não teria tempo de ler nunca.
No fim do semestre, uma aluna pura que tinha coragem de perguntar o que todos nós não sabíamos, mas sabíamos que não podíamos perguntar, formulou a questão-chave: "Professor, tenho um probleminha desde o começo do curso. O senhor poderia nos explicar o que é esta coisa de sujeito-objeto?". Foi a primeira vez que vi a realidade pousar fundo na mente do mestre. "Sujeito, objeto, vocês não sabem o que é sujeito-objeto?" Fez uma cara de oráculo de Delfos e se aposentou. Sério.
Íamos nos virando, estudando como doidos, sem entender da missa a metade. Eu me lembro de que ouvia tudo e ficava com a música. O professor falava bem, a mensagem era bonita, felicidade ou liberdade, a culpa, a baleia branca, a tartaruga, a lebre, a caverna, o real e o ideal. Me inspirava para um conto ou crônica como trabalho de fim de ano. Dois deles foram publicados no suplemento literário do "Estadão", página inteira, inspirada em Husserl, pensei que iria estourar de orgulho. Mas nada aconteceu, continuei querendo escrever sobre cozinha sem conseguir. Até aqui, na própria Folha, esperei horas num corredor inóspito tentando conversar com alguém da seção de culinária para mostrar um texto. Não consegui.
Por que a teimosia em escrever sobre comida? Não sei. Coisa de geração, de achar que essa era a minha parte, que Dahrendorf e Popper e Kuhn se danassem, eu queria fazer o que sabia fazer.
Por uns 20 anos, deixei os romances, fiquei gostando de biografias, de ensaios e mesmo de autores difíceis que escreviam bem, aprendi a arrumar livros na estante. Importante isso. Por época, ou por assunto, ou por gênero, ou, ou. Só isso já justificaria o curso. Saber sistematizar os assuntos, o mundo. Antes já tinha lido coisas que me marcariam para sempre como Thomas Mann, Euclides da Cunha, o inefável Proust, Guimarães Rosa, Flaubert. Freud de cabo a rabo, genial.
E o pastel me esperando na curva, atento.

ninahorta@uol.com.br


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