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"DE CUNHÃ A MAMELUCA"
Livro vê poderio de índias na Colônia
XICO SÁ
CRÍTICO DA FOLHA
Quando começava a bebedeira de cauim, um fermentado de milho capaz de deixar um
guerreiro comovido como o diabo, preciosidade alcoólica feita,
servida e incentivada pelas índias- os jesuítas se arrepiavam
todos. Sinais de guerra e banquete
canibal à vista. Valha-me Jesus,
poderiam ser moqueados a qualquer instante pelas "velhas feiticeiras", como chamavam as protagonistas que cuidavam das farras gastronômicas nas aldeias.
Com uma crítica que revela o
poderio das índias e combate a visão do poder total do macho no
universo tupi, o livro "De Cunhã a
Mameluca a mulher tupinambá e
o nascimento do Brasil", do historiador João Azevedo Fernandes,
acrescenta uma penca de novidades às obras dos sociólogos Gilberto Freyre (1900-1987) e Florestan Fernandes (1920-1995), dois
autores fundamentais no tema.
Mas não somente no que se diz
respeito à importância das mulheres nos costumes, nos rituais,
no trabalho e os dias daquela sociedade. Além do cutucão na crônica androcêntica deixada por
viajantes, antropólogo e outros
observadores, Azevedo, professor
de história da UFPB, mostra como, mesmo com a chegada violenta e desestruturadora dos europeus, são construídas esferas de
consenso e interação social. Aí entram mais uma vez as índias como protagonistas. Muitas tupinambás casaram-se com os primeiros europeus que chegaram
ao Brasil. Nestes enlaces duradouros, lembra o autor, as relações
dos estrangeiros não era como
"senhores de escravos" e sim como "genros, cunhados e sogros".
"Gilberto Freyre fez algumas
observações brilhantes acerca das
mulheres indígenas e das mamelucas, e de seu papel na formação
da família brasileira. Entre elas
destaco a percepção de que a poligamia, amplamente exercida pelos primeiros europeus no Brasil,
era um meio importante de controle e extração do trabalho feminino", diz o historiador. "Entretanto, Freyre via nisto uma prova
da "adaptabilidade" portuguesa
aos trópicos, e de sua miscibilidade sexual, enquanto eu mostro
que eram as próprias índias que
buscavam efetivar estas relações,
não por serem elas "sensuais", mas
por conta de um cálculo político e
econômico, de acordo com o papel do casamento no interior da
própria sociedade tupinambá."
Sobre a obra de Florestan Fernandes, a quem dedica o seu livro,
Azevedo diz que é a mais importante sobre os tupinambás até hoje. "Contudo, seus trabalhos
-como não poderia deixar de
ser, em se tratando de obra de
meados do século 20- são decididamente androcêntricos e pré-feministas", afirma.
Florestan aponta que a sociedade tupinambá era marcada por
uma gerontocracia, em que os homens mais velhos dominavam os
jovens e todas as mulheres. Na
pesquisa de Azevedo, originalmente uma dissertação de mestrado em antropologia cultural na
Universidade Federal de Pernambuco, observa-se que as mulheres
também formavam sua própria
gerontocracia. Daí o medo dos
padres jesuítas de virarem moqueca nas suas mãos.
Graças a esse poder, as mulheres mais velhas conquistavam jovenzinhos para relacionamentos
"calientes". Com prefácio esclarecedor de Ronaldo Vainfas, professor titular de História Moderna da
UFF, que destaca os ineditismos
do autor, o livro revela como ainda existem buracos a tapar na pesquisa histórica da colonização.
"João Azevedo foi muito além
da grandiloqüência libérrima de
nosso autor maior (Gilberto Freyre) e, unindo antropologia e história, deu vida às nossas antigas cunhãs, permitindo reconhecê-las,
também elas, como protagonistas
da história: da história dos tupinambás e da história da colonização, uma e outra misóginas, pelo
menos androcêntricas, cada qual
a seu modo", escreve Vainfas em
"Trópico dos Pecados".
Só nos resta seguir a sabedoria
de gente como João Ramalho e
Caramuru e cair aos pés das mulheres que herdaram o sangue
dessas poderosas guerreiras.
De Cunhã a Mameluca
Autor: João Azevedo Fernandes
Editora: Universitária da Paraíba
Quanto: R$ 25 (303 págs.)
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