São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2004

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"DE CUNHÃ A MAMELUCA"

Livro vê poderio de índias na Colônia

XICO SÁ
CRÍTICO DA FOLHA

Quando começava a bebedeira de cauim, um fermentado de milho capaz de deixar um guerreiro comovido como o diabo, preciosidade alcoólica feita, servida e incentivada pelas índias- os jesuítas se arrepiavam todos. Sinais de guerra e banquete canibal à vista. Valha-me Jesus, poderiam ser moqueados a qualquer instante pelas "velhas feiticeiras", como chamavam as protagonistas que cuidavam das farras gastronômicas nas aldeias.
Com uma crítica que revela o poderio das índias e combate a visão do poder total do macho no universo tupi, o livro "De Cunhã a Mameluca a mulher tupinambá e o nascimento do Brasil", do historiador João Azevedo Fernandes, acrescenta uma penca de novidades às obras dos sociólogos Gilberto Freyre (1900-1987) e Florestan Fernandes (1920-1995), dois autores fundamentais no tema.
Mas não somente no que se diz respeito à importância das mulheres nos costumes, nos rituais, no trabalho e os dias daquela sociedade. Além do cutucão na crônica androcêntica deixada por viajantes, antropólogo e outros observadores, Azevedo, professor de história da UFPB, mostra como, mesmo com a chegada violenta e desestruturadora dos europeus, são construídas esferas de consenso e interação social. Aí entram mais uma vez as índias como protagonistas. Muitas tupinambás casaram-se com os primeiros europeus que chegaram ao Brasil. Nestes enlaces duradouros, lembra o autor, as relações dos estrangeiros não era como "senhores de escravos" e sim como "genros, cunhados e sogros".
"Gilberto Freyre fez algumas observações brilhantes acerca das mulheres indígenas e das mamelucas, e de seu papel na formação da família brasileira. Entre elas destaco a percepção de que a poligamia, amplamente exercida pelos primeiros europeus no Brasil, era um meio importante de controle e extração do trabalho feminino", diz o historiador. "Entretanto, Freyre via nisto uma prova da "adaptabilidade" portuguesa aos trópicos, e de sua miscibilidade sexual, enquanto eu mostro que eram as próprias índias que buscavam efetivar estas relações, não por serem elas "sensuais", mas por conta de um cálculo político e econômico, de acordo com o papel do casamento no interior da própria sociedade tupinambá."
Sobre a obra de Florestan Fernandes, a quem dedica o seu livro, Azevedo diz que é a mais importante sobre os tupinambás até hoje. "Contudo, seus trabalhos -como não poderia deixar de ser, em se tratando de obra de meados do século 20- são decididamente androcêntricos e pré-feministas", afirma.
Florestan aponta que a sociedade tupinambá era marcada por uma gerontocracia, em que os homens mais velhos dominavam os jovens e todas as mulheres. Na pesquisa de Azevedo, originalmente uma dissertação de mestrado em antropologia cultural na Universidade Federal de Pernambuco, observa-se que as mulheres também formavam sua própria gerontocracia. Daí o medo dos padres jesuítas de virarem moqueca nas suas mãos.
Graças a esse poder, as mulheres mais velhas conquistavam jovenzinhos para relacionamentos "calientes". Com prefácio esclarecedor de Ronaldo Vainfas, professor titular de História Moderna da UFF, que destaca os ineditismos do autor, o livro revela como ainda existem buracos a tapar na pesquisa histórica da colonização.
"João Azevedo foi muito além da grandiloqüência libérrima de nosso autor maior (Gilberto Freyre) e, unindo antropologia e história, deu vida às nossas antigas cunhãs, permitindo reconhecê-las, também elas, como protagonistas da história: da história dos tupinambás e da história da colonização, uma e outra misóginas, pelo menos androcêntricas, cada qual a seu modo", escreve Vainfas em "Trópico dos Pecados".
Só nos resta seguir a sabedoria de gente como João Ramalho e Caramuru e cair aos pés das mulheres que herdaram o sangue dessas poderosas guerreiras.


De Cunhã a Mameluca
   
Autor: João Azevedo Fernandes
Editora: Universitária da Paraíba
Quanto: R$ 25 (303 págs.)



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