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"FICÇÃO E HISTÓRIA" E "MACHADO DE ASSIS"
Estudos de teóricos querem dar sentido histórico à obra do escritor
A história do Brasil segundo Machado de Assis
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Já faz algumas décadas que
Machado de Assis vem sido estudado pelo ponto de vista histórico em contrapartida a uma visão estilística, existencial ou psicológica. Essa vertente deve muito ao crítico Roberto Schwarz, que
pelo menos desde "Ao Vencedor
as Batatas" mostra que há muito
mais no Bruxo do Cosme Velho
do que sonha nossa vã filosofia.
A mais recente contribuição a
esses estudos foi dada pelo historiador carioca Sidney Chalhoub,
especialista em temas como o da
escravidão no Brasil. Sua obra
"Machado de Assis: Historiador"
está ligada não só a Schwarz, mas
sobretudo ao inglês John Gledson, cujo inescapável "Machado
de Assis: Ficção e História", foi recentemente relançado.
Gledson faz uma análise de alguns romances da dita fase "realista" de Machado, de par com a
série de crônicas intitulada "Bons
Dias!", procurando mostrar o nexo entre essas histórias e a história
brasileira. Além disso, seguindo
uma tese sua, anteriormente proposta, ele defende a idéia de que o
tipo de realismo praticado pelo
escritor é "enganoso".
Segundo essa perspectiva, devemos desconfiar do que os narradores das ficções de Machado nos
apresentam. É nas entrelinhas e
nas filigranas que o verdadeiro
sentido, especialmente o histórico, pode ser apreendido. O caso
clássico é o de "Dom Casmurro",
no qual as palavras de Bento podem esconder uma atitude de vingança contra os subordinados,
que ele acredita que lhe traíram.
Lendo a contrapelo as ficções de
Machado, ou seja, no espaço entre
o que nos descrevem os narradores e o que o autor nos deixa perceber a respeito do estado de coisas que nos está sendo descrito,
podemos descobrir "a visão machadiana da História do Brasil no
século 19" (Gledson).
Para Chalhoub, essa História é a
história da crise do paternalismo,
que se manifesta de modo mais
contundente em 1871, quando foi
discutida e promulgada a Lei do
Ventre Livre. Na mesma década,
Machado chefiou a segunda seção
da Diretoria da Agricultura do
Ministério da Agricultura, responsável, entre outras coisas, por
dar pareceres acerca da aplicação
da Lei, cuja interpretação era
muitas vezes ambígua.
O romancista sempre procurou
explicar a regra como "lei de liberdade", defendendo alforrias nos
processos que opunham senhor e
escravo. É o que revela Chalhoub,
a partir de documentos pinçados
em exaustiva pesquisa, na segunda, mais extensa e talvez mais original parte de seu livro.
A visão de Machado se assemelha muitas vezes a dos abolicionistas. Uma das contendas complexas ocorreu no município de
Resende. Versava sobre a obrigatoriedade da matrícula dos escravos, a qual, se descumprida, fazia
o senhor perder o direito sobre a
posse do cativo. Machado afirmou que o objeto "essencial e superior do pleito" é a "liberdade do
escravo", a qual se sobrepõe ao direito da propriedade, ou seja, no
caso, à escravidão.
Ao esmiuçar as escaramuças
entre defensores da liberdade e
escravocratas empedernidos,
mostrando a atuação do autor de
"Quincas Borba" à frente de sua
repartição burocrática no Ministério da Agricultura, Chalhoub
poderia chamar essa segunda
parte de seu livro de "Machado de
Assis: Funcionário Público".
A verdade é que essa parte final
dá sustentação à anterior, no sentido em que apresenta de uma
forma viva e concreta a crise senhorial anunciada naquela, nos
percalços que antecederam e seguiram a lei que pôs em xeque um
dos principais pilares da ordem
patriarcal: a escravidão.
Chalhoub também mostra como a ótica dos subordinados livres se interligava, nas ficções de
Machado, à dos escravos. Além
disso, a atuação dos dependentes
estava longe de ser passiva. Não
foram só Capitu e Helena que tentaram conquistar espaço dentro
da lógica dominante. Até d. Plácida, a alcoviteira de "Memórias
Póstumas de Brás Cubas" dá dentadas por dentro da ordem paternalista, sem que os senhores se
apercebessem das "resistências
cotidianas a seu poder".
O perigo, é claro, está em ver nas
narrativas machadianas um mero
"reflexo" da realidade de seu tempo, tese que se contrapõe às análises modernas de romance, inspiradas na crise da representação de
que os textos do bruxo são o melhor exemplo. Outro é buscar
uma intencionalidade em Machado, como se ele tivesse um projeto
consciente de glosar a história
brasileira do período. Se, do ponto de vista histórico, tal hipótese é
difícil de ser comprovada; da
perspectiva literária, pode não ter
nenhuma eficácia crítica.
Senões epistemológicos à parte,
são duas obras essenciais para entender as sutilezas do método de
Machado, autor que, de acordo
com o pensador francês Roger
Bastide, fundiu os movimentos
da sociedade brasileira ao próprio
corpo da composição artística.
Ficção e História
Autor: John Gledson
Editora: Paz e Terra
Quanto: R$ 33,00 (338 págs.)
Machado de Assis: Historiador
Autor: Sidney Chalhoub
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41,00 (352 págs.)
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