São Paulo, sábado, 17 de janeiro de 2004

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"FICÇÃO E HISTÓRIA" E "MACHADO DE ASSIS"

Estudos de teóricos querem dar sentido histórico à obra do escritor
A história do Brasil segundo Machado de Assis

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Já faz algumas décadas que Machado de Assis vem sido estudado pelo ponto de vista histórico em contrapartida a uma visão estilística, existencial ou psicológica. Essa vertente deve muito ao crítico Roberto Schwarz, que pelo menos desde "Ao Vencedor as Batatas" mostra que há muito mais no Bruxo do Cosme Velho do que sonha nossa vã filosofia.
A mais recente contribuição a esses estudos foi dada pelo historiador carioca Sidney Chalhoub, especialista em temas como o da escravidão no Brasil. Sua obra "Machado de Assis: Historiador" está ligada não só a Schwarz, mas sobretudo ao inglês John Gledson, cujo inescapável "Machado de Assis: Ficção e História", foi recentemente relançado.
Gledson faz uma análise de alguns romances da dita fase "realista" de Machado, de par com a série de crônicas intitulada "Bons Dias!", procurando mostrar o nexo entre essas histórias e a história brasileira. Além disso, seguindo uma tese sua, anteriormente proposta, ele defende a idéia de que o tipo de realismo praticado pelo escritor é "enganoso".
Segundo essa perspectiva, devemos desconfiar do que os narradores das ficções de Machado nos apresentam. É nas entrelinhas e nas filigranas que o verdadeiro sentido, especialmente o histórico, pode ser apreendido. O caso clássico é o de "Dom Casmurro", no qual as palavras de Bento podem esconder uma atitude de vingança contra os subordinados, que ele acredita que lhe traíram.
Lendo a contrapelo as ficções de Machado, ou seja, no espaço entre o que nos descrevem os narradores e o que o autor nos deixa perceber a respeito do estado de coisas que nos está sendo descrito, podemos descobrir "a visão machadiana da História do Brasil no século 19" (Gledson).
Para Chalhoub, essa História é a história da crise do paternalismo, que se manifesta de modo mais contundente em 1871, quando foi discutida e promulgada a Lei do Ventre Livre. Na mesma década, Machado chefiou a segunda seção da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura, responsável, entre outras coisas, por dar pareceres acerca da aplicação da Lei, cuja interpretação era muitas vezes ambígua.
O romancista sempre procurou explicar a regra como "lei de liberdade", defendendo alforrias nos processos que opunham senhor e escravo. É o que revela Chalhoub, a partir de documentos pinçados em exaustiva pesquisa, na segunda, mais extensa e talvez mais original parte de seu livro.
A visão de Machado se assemelha muitas vezes a dos abolicionistas. Uma das contendas complexas ocorreu no município de Resende. Versava sobre a obrigatoriedade da matrícula dos escravos, a qual, se descumprida, fazia o senhor perder o direito sobre a posse do cativo. Machado afirmou que o objeto "essencial e superior do pleito" é a "liberdade do escravo", a qual se sobrepõe ao direito da propriedade, ou seja, no caso, à escravidão.
Ao esmiuçar as escaramuças entre defensores da liberdade e escravocratas empedernidos, mostrando a atuação do autor de "Quincas Borba" à frente de sua repartição burocrática no Ministério da Agricultura, Chalhoub poderia chamar essa segunda parte de seu livro de "Machado de Assis: Funcionário Público".
A verdade é que essa parte final dá sustentação à anterior, no sentido em que apresenta de uma forma viva e concreta a crise senhorial anunciada naquela, nos percalços que antecederam e seguiram a lei que pôs em xeque um dos principais pilares da ordem patriarcal: a escravidão.
Chalhoub também mostra como a ótica dos subordinados livres se interligava, nas ficções de Machado, à dos escravos. Além disso, a atuação dos dependentes estava longe de ser passiva. Não foram só Capitu e Helena que tentaram conquistar espaço dentro da lógica dominante. Até d. Plácida, a alcoviteira de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" dá dentadas por dentro da ordem paternalista, sem que os senhores se apercebessem das "resistências cotidianas a seu poder".
O perigo, é claro, está em ver nas narrativas machadianas um mero "reflexo" da realidade de seu tempo, tese que se contrapõe às análises modernas de romance, inspiradas na crise da representação de que os textos do bruxo são o melhor exemplo. Outro é buscar uma intencionalidade em Machado, como se ele tivesse um projeto consciente de glosar a história brasileira do período. Se, do ponto de vista histórico, tal hipótese é difícil de ser comprovada; da perspectiva literária, pode não ter nenhuma eficácia crítica.
Senões epistemológicos à parte, são duas obras essenciais para entender as sutilezas do método de Machado, autor que, de acordo com o pensador francês Roger Bastide, fundiu os movimentos da sociedade brasileira ao próprio corpo da composição artística.


Ficção e História
    
Autor: John Gledson
Editora: Paz e Terra
Quanto: R$ 33,00 (338 págs.)

Machado de Assis: Historiador
    
Autor: Sidney Chalhoub
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41,00 (352 págs.)



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