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BERNARDO CARVALHO
Aprendiz da ironia
O espanhol Enrique Vila-Matas (1948) começa seu livro mais recente, "París No Se
Acaba Nunca", publicado no ano
passado pela Anagrama, com
uma obsessão: convencido de que
se parece muito (fisicamente)
com Ernest Hemingway (a despeito do que lhe dizem os amigos
e a mulher), vai a Key West participar de um concurso de sósias do
escritor americano, que se matou
em 1961, quando já não conseguia escrever uma única linha.
O título do livro foi tirado de
"Paris É uma Festa". É uma frase
nostálgica de Hemingway sobre
seus anos de aprendizado literário na cidade, quando foi "pobre e
feliz".
Vila-Matas também fala do seu
aprendizado literário em Paris,
nos anos 70, quando foi "pobre e
infeliz". Seu livro é sobre um tempo que se perdeu e um lugar que
acabou (ao contrário do que sugere o título), escrito por um homem que substituiu a nostalgia
pela ironia -não apenas para se
distanciar de qualquer mistificação do passado, mas para garantir esse distanciamento também
em relação ao que se anuncia para o futuro.
Ironicamente inspirado no relato autobiográfico de Hemingway
sobre Paris, Vila-Matas faz um
relato autobiográfico que pode
ser ficcional e que obedece a um
movimento simultâneo de mistificação e desmistificação. É um livro que lamenta e ri ao mesmo
tempo a morte de uma época e de
uma idéia de literatura. Com escárnio fleumático, o autor mostra
que já não faz parte dela, embora
tenha sido formado por ela e continue a saudá-la.
Para tanto, inventou um gênero
que oscila entre o ensaio e a autobiografia, compondo citações de
escritores e anedotas literárias em
forma de diário pessoal (como já
havia feito em "Bartleby y Compañia", sobre os escritores da modernidade que de uma hora para
outra abandonaram a escrita, a
exemplo de Juan Rulfo, Rimbaud
e Salinger). Mas, ao contrário da
busca da originalidade e da novidade que tanto marcou essa literatura, Vila-Matas escreve temeroso diante da novidade eventual, do que está por vir. Vive
num tempo em que o que se
anuncia parece sempre pior. Escreve com o pé no freio. E esse
freio é a ironia.
"A ironia me parece um potente
artefato para desativar a realidade. (...) Me fazem rir, por exemplo, os escritores realistas que duplicam a realidade, empobrecendo-a. (...) Minha consciência sempre foi para mim uma ironia em
crescimento. (...) Nada seria sem a
ironia."
Os textos de Vila-Matas são, assim, uma forma de se fazer presente pela distância, de não perder de vista a literatura do passado, sem ter que se submeter a
uma celebração mistificadora dela. Uma forma de encontrar o estilo, recusando o estilo, de aprender ao mesmo tempo em que ri
das cartilhas e das igrejas. Uma
forma de participar da renovação
da literatura sem se identificar
com essa renovação.
Sobre a idéia do novo, por
exemplo, o autor recorre a Borges
e à tese desenvolvida no célebre
"Pierre Menard, Autor do Quixote": "Se escrevo uma coisa que você já escreveu, é a mesma coisa,
mas também já não é". Borges lhe
serve ainda de antídoto contra a
nostalgia: para o mestre argentino, as lembranças são sempre de
segunda mão, sempre lembranças
de lembranças, nunca da imagem
original: "Talvez não tenhamos
lembranças verdadeiras da nossa
juventude".
É a deixa para Vila-Matas desmontar também o mito do "autor
jovem", já que não vê nenhuma
grandeza, pureza, espontaneidade ou intensidade no que escreveu na juventude: "É como se em
Paris tivesse postergado tudo com
habilidade para sentir verdadeiramente a sedução da escritura
nestes anos de agora, os da idade
tardia" -ao contrário de Hemingway, que se matou maduro
quando, diante do peso da glória
conquistada desde os livros de juventude, já não conseguia escrever mais nada.
Também ao contrário de Hemingway, a Paris de Vila-Matas
não é povoada por Gertrude
Stein, James Joyce e F. Scott Fitzgerald, mas por Marguerite Duras (que lhe aluga um quartinho e
dá conselhos que deixam o aprendiz de escritor pasmo), Beckett e
Roland Barthes, todos a um só
tempo vítimas do seu humor e objetos da sua admiração.
Durante os anos que passou em
Paris, Vila-Matas se debateu com
a idéia engenhosa de um primeiro romance que teria por título "A
Assassina Ilustrada", um livro
que causasse a morte de todos os
que o lessem. O romance foi publicado sem nenhuma baixa entre os leitores, mas de lá para cá a
idéia parece ter amadurecido na
cabeça do autor, a julgar por este
"París No Se Acaba Nunca", que
faz o leitor morrer de rir.
O livro ironiza a idéia de "verdade" na literatura - nos próprios textos e nas biografias, na
experiência e no aprendizado dos
autores e nas lições e regras que se
tiram deles. Ambíguo, zombando
ao mesmo tempo em que admira,
para Vila-Matas o que conta na
literatura é a ficção - e isso não
a desmerece, ao contrário, é a essência da sua força, pois a literatura é a exaltação da invenção e
da criação. Graças à ironia, ele
passou a "suspeitar que todos os
escritores (...) que tinham uma visão acabada do mundo eram na
realidade ridículos, pois se a literatura era possível isso se devia
ao mundo não estar acabado". A
ironia, afinal, fez dele um escritor
com uma visão de mundo.
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