São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

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BERNARDO CARVALHO

Aprendiz da ironia

O espanhol Enrique Vila-Matas (1948) começa seu livro mais recente, "París No Se Acaba Nunca", publicado no ano passado pela Anagrama, com uma obsessão: convencido de que se parece muito (fisicamente) com Ernest Hemingway (a despeito do que lhe dizem os amigos e a mulher), vai a Key West participar de um concurso de sósias do escritor americano, que se matou em 1961, quando já não conseguia escrever uma única linha.
O título do livro foi tirado de "Paris É uma Festa". É uma frase nostálgica de Hemingway sobre seus anos de aprendizado literário na cidade, quando foi "pobre e feliz".
Vila-Matas também fala do seu aprendizado literário em Paris, nos anos 70, quando foi "pobre e infeliz". Seu livro é sobre um tempo que se perdeu e um lugar que acabou (ao contrário do que sugere o título), escrito por um homem que substituiu a nostalgia pela ironia -não apenas para se distanciar de qualquer mistificação do passado, mas para garantir esse distanciamento também em relação ao que se anuncia para o futuro.
Ironicamente inspirado no relato autobiográfico de Hemingway sobre Paris, Vila-Matas faz um relato autobiográfico que pode ser ficcional e que obedece a um movimento simultâneo de mistificação e desmistificação. É um livro que lamenta e ri ao mesmo tempo a morte de uma época e de uma idéia de literatura. Com escárnio fleumático, o autor mostra que já não faz parte dela, embora tenha sido formado por ela e continue a saudá-la.
Para tanto, inventou um gênero que oscila entre o ensaio e a autobiografia, compondo citações de escritores e anedotas literárias em forma de diário pessoal (como já havia feito em "Bartleby y Compañia", sobre os escritores da modernidade que de uma hora para outra abandonaram a escrita, a exemplo de Juan Rulfo, Rimbaud e Salinger). Mas, ao contrário da busca da originalidade e da novidade que tanto marcou essa literatura, Vila-Matas escreve temeroso diante da novidade eventual, do que está por vir. Vive num tempo em que o que se anuncia parece sempre pior. Escreve com o pé no freio. E esse freio é a ironia.
"A ironia me parece um potente artefato para desativar a realidade. (...) Me fazem rir, por exemplo, os escritores realistas que duplicam a realidade, empobrecendo-a. (...) Minha consciência sempre foi para mim uma ironia em crescimento. (...) Nada seria sem a ironia."
Os textos de Vila-Matas são, assim, uma forma de se fazer presente pela distância, de não perder de vista a literatura do passado, sem ter que se submeter a uma celebração mistificadora dela. Uma forma de encontrar o estilo, recusando o estilo, de aprender ao mesmo tempo em que ri das cartilhas e das igrejas. Uma forma de participar da renovação da literatura sem se identificar com essa renovação.
Sobre a idéia do novo, por exemplo, o autor recorre a Borges e à tese desenvolvida no célebre "Pierre Menard, Autor do Quixote": "Se escrevo uma coisa que você já escreveu, é a mesma coisa, mas também já não é". Borges lhe serve ainda de antídoto contra a nostalgia: para o mestre argentino, as lembranças são sempre de segunda mão, sempre lembranças de lembranças, nunca da imagem original: "Talvez não tenhamos lembranças verdadeiras da nossa juventude".
É a deixa para Vila-Matas desmontar também o mito do "autor jovem", já que não vê nenhuma grandeza, pureza, espontaneidade ou intensidade no que escreveu na juventude: "É como se em Paris tivesse postergado tudo com habilidade para sentir verdadeiramente a sedução da escritura nestes anos de agora, os da idade tardia" -ao contrário de Hemingway, que se matou maduro quando, diante do peso da glória conquistada desde os livros de juventude, já não conseguia escrever mais nada.
Também ao contrário de Hemingway, a Paris de Vila-Matas não é povoada por Gertrude Stein, James Joyce e F. Scott Fitzgerald, mas por Marguerite Duras (que lhe aluga um quartinho e dá conselhos que deixam o aprendiz de escritor pasmo), Beckett e Roland Barthes, todos a um só tempo vítimas do seu humor e objetos da sua admiração.
Durante os anos que passou em Paris, Vila-Matas se debateu com a idéia engenhosa de um primeiro romance que teria por título "A Assassina Ilustrada", um livro que causasse a morte de todos os que o lessem. O romance foi publicado sem nenhuma baixa entre os leitores, mas de lá para cá a idéia parece ter amadurecido na cabeça do autor, a julgar por este "París No Se Acaba Nunca", que faz o leitor morrer de rir.
O livro ironiza a idéia de "verdade" na literatura - nos próprios textos e nas biografias, na experiência e no aprendizado dos autores e nas lições e regras que se tiram deles. Ambíguo, zombando ao mesmo tempo em que admira, para Vila-Matas o que conta na literatura é a ficção - e isso não a desmerece, ao contrário, é a essência da sua força, pois a literatura é a exaltação da invenção e da criação. Graças à ironia, ele passou a "suspeitar que todos os escritores (...) que tinham uma visão acabada do mundo eram na realidade ridículos, pois se a literatura era possível isso se devia ao mundo não estar acabado". A ironia, afinal, fez dele um escritor com uma visão de mundo.


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