São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

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3 letras para o rap


O grupo SNJ (Somos Nós a Justiça) reivindica diversidade ao circuito hip hop de São Paulo


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Em sua origem, há mais de dez anos, o grupo de rap SNJ advogava o radicalismo -a sigla significava Sistema Negro Justiceiro. Conforme integrantes foram saindo e entrando, a sigla foi mantida, mas o nome foi amenizado para Somos Nós a Justiça.
A busca pela justiça sobrevive, mas também foi adaptada. O grupo segue procurando espaço igualitário na sociedade, mas a batalha é acirrada também dentro do próprio circuito do hip hop.
É que o SNJ é formado por rappers que escapam das convenções da nova black music brasileira de periferia. Bastardo, 23, filho de pai branco e mãe negra, tem olhos claros e é tido como branco. A vocalista, Cris, 27, afronta a exclusividade masculina dos grupos de rap. Cabeça, 23, e o DJ W-Jay, 28, são negros miscigenados.
Cris diz que foi bem aceita pelos rapazes, mas Cabeça descreve certa resistência: "Rola preconceito, não sei se porque o cara se sente ameaçado, não admite uma mulher num grupo de rap". Para ele, "os grupos não dão força para as brasileiras, mas compram CDs de Lauryn Hill, Erykah Badu."
Bastardo afirma que o grupo sofre menos resistência por incluir uma menina do que por ter um branco. "Chegaram falando assim: "Se você é branco não tem que cantar rap, cai fora". Me senti discriminado por ser branco."
Cris aborda também o preconceito racial, que diz ser cotidiano. "As pessoas dizem que a cor da pele não influi, mas influi, sim. As portas se fecham na hora de procurar emprego", diz.
A tensão gerada pelas diferenças que convivem no SNJ leva a um discurso cauteloso em relação ao próprio estilo. "Não gostamos de falar em rap, nós somos músicos. Escutamos samba, MPB, bossa nova, música erudita, música européia", classifica Bastardo.

Mais diferenças
O grupo, que nasceu em Guarulhos, é descentralizado. Cris é da zona norte paulistana, Cabeça mora em Guarulhos (15 km ao norte de São Paulo) e Bastardo e W-Jay vivem em Arujá (38 km ao nordeste de São Paulo).
Suas letras são políticas, como é praxe no rap, mas evitam clichês de armas pesadas, penitenciárias e violência. Chegam a ser bem-humoradas e sarcásticas em vários momentos. Uma ilustração colorida ocupa a capa do CD novo, "O Show Deve Continuar".
Bastardo explica: "Procuramos temas não abordados no rap. Queremos inovar, sem deixar de lado a base de criticar as diferenças sociais, étnicas, financeiras".
Exemplos do humor SNJ aparecem na letra de cowboys hollywoodianos de "Viajando na Balada" (2000) e no arranjo pop cantarolado da nova "O Show Deve Continuar".
Mesmo fugindo tanto dos padrões, o SNJ conquistou apoio no hip hop -dois dos Racionais Mc's estiveram envolvidos na produção de "O Show Deve Continuar". KL-Jay cuidou da faixa "Do Céu Só Cai Chuva (Chuá, Chuá)" e Edy Rock produziu "Pensamentos" e "Espelho".
"Espelho", em especial, condensa o pensamento do SNJ, pedindo igualdade na variedade ("ninguém precisa ser/ igual a você", "se você é normal/ que nós somos então?") e cometendo a audácia rapper de pedir respeito indiferenciado a católicos, místicos, crentes, mulheres, homossexuais, lésbicas, simpatizantes etc.
"A gente quer estimular a auto-estima das pessoas, sejam elas quem forem", explica Bastardo, dizendo que esse é um trunfo do SNJ. "As coisas polêmicas ajudam, dão um empurrão."
"Como querer espaço sendo igual a todo mundo? Você só seria mais um", pergunta Cabeça.
E Bastardo condensa os propósitos do SNJ: "Tem que transpirar algo de bom da música, transformar raiva em auto-estima. A raiva e o amor são muito próximos, todo mundo tem coração".

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