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Crítica/"Esquimó"
Amor é ponto de fuga quando instabilidade sufoca o leitor
Tensão entre mal-estar urbano e memória infantil permanece em Corsaletti
FRANCISCO BOSCO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Everything is broken" -é a sentença
que abre o novo livro de Fabrício Corsaletti. A
"alegria/ está quebrada/ o cansaço/ está quebrado/ tudo está
quebrado", conta-nos o poema
inaugural. A ele sucede uma série de "Variações", nas quais a
declaração explícita da abertura engendra-se laconicamente
(e assim com maior contundência) na própria forma do
poema. Essas variações apresentam frases, descritivas ou
aforismáticas, que são colocadas diante de um espelho, de
modo a que cada dito se disponha em face a seu oposto.
Por exemplo: "Sou dos que
vivem/ como se nada tivesse
acontecido"; e, na página ao lado: "Não sou dos que vivem como se nada tivesse acontecido".
A inversão das frases vai criando uma atmosfera de instabilidade, onde a verdade patina,
desajeitada, sobre gelo escorregadio. "O caminho é sempre o
mesmo", "o caminho é sempre
outro": Não se trata de aforismas cancrizáveis, em cuja inversão se pode ler sua formulação inconsistente, mas de aforismas em cuja hesitação pode-se ler a inconsistência do mundo. Tudo está quebrado.
Entretanto dentro da quebra
surge o espaço possível: "Há
uma pessoa no mundo/ que
não está quebrada/ e eu estou
ao seu lado". O amor é uma das
utopias dos poemas, um dos
pontos de fuga da perspectiva
do livro, sendo o outro o desejo
de "criar porcos em Araraquara", de passar "as tardes cuidando/ da horta e das galinhas".
Num plano existencial, o
livro se encena na tensão entre
o mal-estar na cidade grande,
"chata" e "infernal", e as totalidades desejadas do amor, da infância e do vilarejo.
Dessa tensão decorre a dicção do livro, de
um humor melancólico que faz
pensar em Drummond.
Se a dicção tem algo de oblíquo, o método é exato. O alicerce da arquitetura dos poemas
são os espaços brancos produzidos pelos cortes de alta precisão. Entre um verso e outro, entre uma estrofe e outra, abre-se
um vazio: "As embalagens de
plástico/ e as obras de artistas
plásticos// -quero que a moça
do telemarketing/ venha comigo".
Os pequenos blocos de versos boiam sobre os vazios como
os blocos de cor nas telas de
Rothko. Nesses espaços abertos pelos cortes situam-se o
prazer e a dúvida do leitor.
Mas é uma economia variável. Há poemas em que os versos ligam-se visivelmente, como em "Culpa": "Não vou/me
perdoar/ pelo que fiz// não
vou/ me arrepender/ do que
fiz// vou viver/ com esta dor/ a
mais// como se/ na mão tivesse/ um// dedo a mais".
E há outros em que as pontes
são queimadas: "A cidade estava sendo/ destruída// - eu tinha vontade/ de apertar/ a
mão/ de cada um/ dos seus professores". Aqui são cortes drásticos, sulcos vastos, o travessão
é o instrumento por excelência
do talho, e ao leitor cabe refazer
o percurso do poema.
Ao final, se um livro vale pelo
quanto se prolonga finda a leitura, não posso deixar de recomendar um livro de que guardei belos poemas, e um que entrou para a minha antologia
pessoal, "Lígia e os idiotas".
FRANCISCO BOSCO, ensaísta e letrista, é autor de "Folha Explica Dorival Caymmi" (Publifolha)
ESQUIMÓ
Autor: Fabrício Corsaletti
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (80 págs.)
Avaliação: bom
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