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CONTARDO CALLIGARIS
Devaneios papais
Faz tempo que, em vez de um discurso moral, católicos ouvem litanias em defesa da "doutrina"
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NA VISITA do papa, aconteceu o
que era previsto: o trânsito
de São Paulo piorou, frei Galvão virou santo, o pontífice estigmatizou o aborto, o divórcio, o "hedonismo" contemporâneo, o marxismo, o capitalismo, as "seitas", as "religiões pré-colombianas" etc.
A surpresa foi o comportamento
do presidente Lula e do ministro da
Saúde, José Temporão: ambos foram perfeitos, defendendo a laicidade do Estado a que eles servem. Lula,
o cidadão, poderia beijar o anel do
papa; Lula, o presidente, não podia e
não o fez. Temporão evitou o debate
moral sobre o aborto e lembrou que
se trata, para ele e para o governo, de
um problema de saúde pública.
Sem diminuir o mérito de ambos,
a tarefa do presidente e do ministro
foi facilitada pela trivialidade do desempenho papal.
Escutei e li as falas do pontífice ao
longo destes dias com um tédio crescente: nunca fui surpreendido por
uma daquelas marcas de tormento,
de conflito e de contradição que são,
para mim (e não só para mim), os indicadores mínimos de uma disposição moral diante da complexidade
do mundo. As exortações papais
eram circulares administrativas, tão
previsíveis e preestabelecidas quanto as preces do rosário. Ora, o rosário
pode agradar a Deus e ajudar aos
que, na devoção, não encontram
suas próprias palavras, mas, certamente, a repetição das contas não
estabelece a autoridade moral de
ninguém.
Em sua primeira visita papal ao
Brasil e à América, o papa passou a
noite no mosteiro de São Bento, no
centro de São Paulo. Não há lugar
melhor para refletir sobre a estranha história que, em poucos séculos,
transformou uma aldeia indígena
num acampamento bandeirante e,
enfim, numa das maiores metrópoles do mundo. Em vez de preocupar-se com o hábito adolescente de "ficar" (êta questão insossa para suplemento de domingo em falta de pauta), o papa poderia ter confiado nos
jovens e adotado as mil perguntas
"ingênuas", profundas e perplexas
que justamente passariam pela cabeça de qualquer adolescente ao
transcorrer uma noite no mosteiro
(por mais que, nas festas, ele "fique"): perguntas sobre o que foi ganho e o que foi perdido, sobre o que é a América, sobre o rumo de nossa
história, sobre a dificuldade de dizer
onde estiveram (e estão) o bem e o
mal. Mas, pelo que o papa manifestou da experiência das noites passadas no mosteiro, ele deve ter dormido mesmo.
Além de repetir as palavras de
sempre sobre a santidade da vida
desde o embrião, o papa, por uma
vez, poderia ter pensado numa jovem estuprada ou numa mulher
(devidamente casada) incapaz de
alimentar seus três, quatro ou cinco
filhos, ambas batendo os dentes pela
dor e pela infecção que já começa, na
clínica improvisada de um abortista
apressado.
Quem sabe, sem desistir de seus
princípios, ele pudesse se perguntar
onde estaria, naquela hora, o Cristo
dos evangelhos: só na porta, desdenhoso, jogando anátemas, ou também (sem contradição) ao lado das
mulheres, secando seu suor e falando palavras de conforto?
Da mesma forma, não sei se o
Cristo dos evangelhos, passeando
por nossas bandas nos anos 80 (numa ficção à la Dostoievski), teria distribuído camisinhas na entrada de
uma sauna gay ou seringas descartáveis nos becos preferidos pelos heroinômanos. Talvez não, mas imagino que ele teria estado ao lado dos
moribundos nas mil enfermarias,
pelo mundo afora, em que os médicos não sabiam o que fazer. Também
imagino que, nesta ocasião, o Cristo
teria meditado sobre o coquetel de
liberdade (sem a qual os atos não valeriam nada), desamparo, razão e
impulsos que é a condição humana.
Como notaram Fernando de Barros e Silva, Fernando Rodrigues e
Sérgio Costa na Folha de segunda,
faz tempo que os católicos não ouvem um discurso moral que não seja apenas a litania abstrata do que
parece recomendável para a defesa
da doutrina e a perpetuação da
Igreja como instituição.
Eu esperava o quê? Um blablablá
de tolerância modernosa? Não;
apenas um discurso cuja origem
fosse, reconhecidamente, aquele
lugar íntimo, dividido e complicado ao qual cada um de nós recorre
na hora de tomar as decisões que
importam.
Alguém dirá que, justamente, o
papa não fala desse lugar. Ele não é
um homem, é o papa - prova disso,
ele é infalível.
Pode ser, mas, talvez seja por isso
mesmo que o papa tenha passado,
falado, e nada tenha acontecido.
Um desperdício.
ccalligari@uol.com.br
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