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Crítica/"O Sonho dos Heróis"
Literatura trágica de Bioy tem amizade, tango e Carnaval
"O Sonho dos Heróis" traz personagem que tenta descobrir o que ocorreu após uma noite de bebedeira no Carnaval de 1927
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Compreendeu que
um destino não é
melhor do que outro, mas que todo homem deve
acatar o que leva dentro de si.
Compreendeu que as espadas e
o uniforme já o atrapalhavam.
Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de cão gregário." Assim termina o conto
"Tadeo Isidoro Cruz", de Jorge
Luis Borges, que, como seu
grande companheiro de vida e
literatura Adolfo Bioy Casares,
sabia que, na literatura trágica
(e talvez também na vida), um
homem não pode fugir a seu
destino. Pior. Quanto mais tenta escapar dele, mas vai ao seu
encontro. E o destino de um
homem é sempre (sobretudo
para aqueles que se preocupam
em desvendá-lo) fatal.
Os homens carregam dentro
de si aquilo que um dia deverá
se revelar, mesmo que seja o
oposto do que aparentamos
ser, e o momento da revelação
desse destino inexorável pode
ser qualquer um; não é preciso
uma grande preparação. Na
verdade, a vida inteira já é uma
preparação, mesmo que inconsciente, para que o destino
de um homem se revele. Sem
essa certeza, não haveria literatura trágica, e isso o povo argentino conhece muito bem.
Carnaval de 1927
Também em "O Sonho dos
Heróis", de Adolfo Bioy Casares, o protagonista Emilio Gauna -a despeito de todos os sinais com que a vida lhe acena
para que não persiga seu destino- passa três anos tentando
descobrir o que lhe ocorreu numa terceira noite de carnaval
de 1927, após uma bebedeira
que o deixa desmemoriado.
No Carnaval, ao fingirmos
ser o que não somos, muitas vezes acabamos por descobrir
quem somos de verdade. E, durante a busca por essa descoberta, a narrativa genial de Bioy
Casares vai nos levando hipnoticamente pelos caminhos dos
anos 20 na Argentina, pelo tango e pelas ambíguas relações
entre o tango, a amizade e o
amor.
No início do romance, Gauna, na terceira noite de Carnaval, se encontra bêbado, entre
árvores, "atento ao instável e
mercurial reflexo da lua em seu
punhal". Nos três anos seguintes, apaixona-se pela filha de
um bruxo, trabalha como mecânico numa oficina, encontra-se semanalmente com amigos
mateiros e tangueiros, mas não
consegue esquecer daquele reflexo mercurial.
É o próprio bruxo, seu sogro,
quem lhe diz: "Se no futuro não
encontrarmos o que procuramos, será porque não soubemos procurar". Ou seja, o futuro está lá, à nossa espera, mas
cabe a nós procurarmos por ele;
ou seja, somos nós que construímos aquilo que, de qualquer maneira, já estava nos
aguardando.
Tangos
É dessa e nessa duplicidade
que Bioy Casares constrói uma
história permeada por tangos
(principalmente "Adiós Muchachos"), pela necessidade e
dificuldade de um homem ficar
ao lado de uma mulher e um tipo de construção narrativa em
que os personagens mais simples desenvolvem os pensamentos mais complexos, sem
nunca afetarem artificialidade
ou presunção.
Para isso, a ótima tradução
também auxilia. E, já que a
comparação é inevitável, é possível que Casares tenha chegado até a superar seu amigo mais
famoso. Mas estamos entre titãs e, nessa arena, todos são
vencedores ou, de forma mais
coerente, trágicos, orgulhosos e
portenhos perdedores.
O SONHO DOS HERÓIS
Autor: Adolfo Bioy Casares
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 49 (240 págs.)
Avaliação: ótimo
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