São Paulo, sábado, 17 de maio de 2008

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Crítica/"O Sonho dos Heróis"

Literatura trágica de Bioy tem amizade, tango e Carnaval

"O Sonho dos Heróis" traz personagem que tenta descobrir o que ocorreu após uma noite de bebedeira no Carnaval de 1927

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Compreendeu que um destino não é melhor do que outro, mas que todo homem deve acatar o que leva dentro de si.
Compreendeu que as espadas e o uniforme já o atrapalhavam.
Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de cão gregário." Assim termina o conto "Tadeo Isidoro Cruz", de Jorge Luis Borges, que, como seu grande companheiro de vida e literatura Adolfo Bioy Casares, sabia que, na literatura trágica (e talvez também na vida), um homem não pode fugir a seu destino. Pior. Quanto mais tenta escapar dele, mas vai ao seu encontro. E o destino de um homem é sempre (sobretudo para aqueles que se preocupam em desvendá-lo) fatal. Os homens carregam dentro de si aquilo que um dia deverá se revelar, mesmo que seja o oposto do que aparentamos ser, e o momento da revelação desse destino inexorável pode ser qualquer um; não é preciso uma grande preparação. Na verdade, a vida inteira já é uma preparação, mesmo que inconsciente, para que o destino de um homem se revele. Sem essa certeza, não haveria literatura trágica, e isso o povo argentino conhece muito bem.

Carnaval de 1927
Também em "O Sonho dos Heróis", de Adolfo Bioy Casares, o protagonista Emilio Gauna -a despeito de todos os sinais com que a vida lhe acena para que não persiga seu destino- passa três anos tentando descobrir o que lhe ocorreu numa terceira noite de carnaval de 1927, após uma bebedeira que o deixa desmemoriado.
No Carnaval, ao fingirmos ser o que não somos, muitas vezes acabamos por descobrir quem somos de verdade. E, durante a busca por essa descoberta, a narrativa genial de Bioy Casares vai nos levando hipnoticamente pelos caminhos dos anos 20 na Argentina, pelo tango e pelas ambíguas relações entre o tango, a amizade e o amor.
No início do romance, Gauna, na terceira noite de Carnaval, se encontra bêbado, entre árvores, "atento ao instável e mercurial reflexo da lua em seu punhal". Nos três anos seguintes, apaixona-se pela filha de um bruxo, trabalha como mecânico numa oficina, encontra-se semanalmente com amigos mateiros e tangueiros, mas não consegue esquecer daquele reflexo mercurial.
É o próprio bruxo, seu sogro, quem lhe diz: "Se no futuro não encontrarmos o que procuramos, será porque não soubemos procurar". Ou seja, o futuro está lá, à nossa espera, mas cabe a nós procurarmos por ele; ou seja, somos nós que construímos aquilo que, de qualquer maneira, já estava nos aguardando.

Tangos
É dessa e nessa duplicidade que Bioy Casares constrói uma história permeada por tangos (principalmente "Adiós Muchachos"), pela necessidade e dificuldade de um homem ficar ao lado de uma mulher e um tipo de construção narrativa em que os personagens mais simples desenvolvem os pensamentos mais complexos, sem nunca afetarem artificialidade ou presunção.
Para isso, a ótima tradução também auxilia. E, já que a comparação é inevitável, é possível que Casares tenha chegado até a superar seu amigo mais famoso. Mas estamos entre titãs e, nessa arena, todos são vencedores ou, de forma mais coerente, trágicos, orgulhosos e portenhos perdedores.


O SONHO DOS HERÓIS
Autor: Adolfo Bioy Casares
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 49 (240 págs.)
Avaliação: ótimo



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