São Paulo, domingo, 17 de junho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"Reis e Rainha"

Desplechin seduz com filme que desconstrói as relações familiares

Diretor francês traça trajetória ora paralela, ora confluente, de uma galerista e seu desajustado ex-marido violinista

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Reis e Rainha" surgiu há dois anos como uma jóia rara. Encantou tanto o público como a crítica, caso raro no cinema francês atual. Não é fácil explicar a alquimia que propiciou ao diretor Arnaud Desplechin conseguir a façanha. Como toda verdadeira obra de arte, "Reis e Rainha" parece ter vida própria, independente de seus realizadores.
Claro que a impressão é ilusória. Ao traçar as trajetórias ora paralelas, ora confluentes, da galerista Nora (Emmanuelle Devos) e de seu desajustado ex-marido violinista Ismael (Matthieu Amalric), Desplechin lançou mão de uma profunda maestria cinematográfica, mas sem que esta sufocasse o elã vital de seus personagens ou aplainasse o terreno acidentado da vida.
Ao contrário: a técnica foi usada, aqui, para realçar as arestas, as ambigüidades, os pontos obscuros da experiência humana.
Há, para começar, uma astúcia de construção narrativa. Os distintos momentos da vida de Nora, bem como da de Ismael, são apresentados fora de ordem, ou antes numa ordem que revela aos poucos camadas insuspeitas de afeto, de temperamento, de caráter.
Assim, a relação entre Nora e o pai escritor (Maurice Garrel) se transforma várias vezes diante dos nossos olhos e dos próprios personagens, por conta das revelações que, a conta-gotas, de modo descontínuo, o filme nos apresenta. O mesmo vale para as relações entre Nora e Ismael, entre este e sua irmã, entre Nora e o filho etc.
Laços familiares se esgarçam e se refazem o tempo todo, velhas famílias desmoronam, outras se formam. Desplechin expõe esse mundo fragmentário e cambiante como um jogo de espelhos. Nada é o que parece ser no primeiro momento, nem no segundo, nem no último.
A sensação decorrente é a de que nenhum destino, nenhuma vida, é apreensível em seu todo, ao contrário do que tenta mostrar o cinema convencional. Mas o que torna pulsante o cinema de Desplechin, mais do que a estrutura narrativa, é sua maneira de filmar os personagens e decompor sua ação.
Em sua bela análise do filme à época do lançamento, o crítico da Folha Cássio Starling Carlos escreveu que o diretor "encena com os atores muitas vezes no limite do "overacting" e depois monta a cena como uma miríade de pontos de vista e de camadas sobrepostas de temporalidade".
O efeito desse método é o de colher os personagens no contrapé, não para diminuí-los ou ridicularizá-los, mas para mostrá-los em sua imperfeita, precária e sublime dimensão humana.


REIS E RAINHA
Direção:
Arnaud Desplechin
Distribuidora: Imovision (disponível só para locação)
Avaliação: ótimo


Texto Anterior: Ator recebe prêmio por sua carreira na tela
Próximo Texto: Nas lojas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.