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Crítica/"Reis e Rainha"
Desplechin seduz com filme que desconstrói as relações familiares
Diretor francês traça trajetória ora paralela, ora confluente, de uma galerista e seu desajustado ex-marido violinista
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Reis e Rainha" surgiu
há dois anos como
uma jóia rara. Encantou tanto o público como a
crítica, caso raro no cinema
francês atual. Não é fácil explicar a alquimia que propiciou ao
diretor Arnaud Desplechin
conseguir a façanha. Como toda verdadeira obra de arte,
"Reis e Rainha" parece ter vida
própria, independente de seus
realizadores.
Claro que a impressão é ilusória. Ao traçar as trajetórias
ora paralelas, ora confluentes,
da galerista Nora (Emmanuelle
Devos) e de seu desajustado ex-marido violinista Ismael (Matthieu Amalric), Desplechin lançou mão de uma profunda maestria cinematográfica, mas
sem que esta sufocasse o elã vital de seus personagens ou
aplainasse o terreno acidentado da vida.
Ao contrário: a técnica foi
usada, aqui, para realçar as
arestas, as ambigüidades, os
pontos obscuros da experiência
humana.
Há, para começar, uma astúcia de construção narrativa. Os
distintos momentos da vida de
Nora, bem como da de Ismael,
são apresentados fora de ordem, ou antes numa ordem que
revela aos poucos camadas insuspeitas de afeto, de temperamento, de caráter.
Assim, a relação entre Nora e
o pai escritor (Maurice Garrel)
se transforma várias vezes
diante dos nossos olhos e dos
próprios personagens, por conta das revelações que, a conta-gotas, de modo descontínuo, o
filme nos apresenta. O mesmo
vale para as relações entre Nora
e Ismael, entre este e sua irmã,
entre Nora e o filho etc.
Laços familiares se esgarçam
e se refazem o tempo todo, velhas famílias desmoronam, outras se formam. Desplechin expõe esse mundo fragmentário e
cambiante como um jogo de espelhos. Nada é o que parece ser
no primeiro momento, nem no
segundo, nem no último.
A sensação decorrente é a de
que nenhum destino, nenhuma
vida, é apreensível em seu todo,
ao contrário do que tenta mostrar o cinema convencional.
Mas o que torna pulsante o
cinema de Desplechin, mais do
que a estrutura narrativa, é sua
maneira de filmar os personagens e decompor sua ação.
Em sua bela análise do filme
à época do lançamento, o crítico da Folha Cássio Starling
Carlos escreveu que o diretor
"encena com os atores muitas
vezes no limite do "overacting"
e depois monta a cena como
uma miríade de pontos de vista
e de camadas sobrepostas de
temporalidade".
O efeito desse método é o de
colher os personagens no contrapé, não para diminuí-los ou
ridicularizá-los, mas para mostrá-los em sua imperfeita, precária e sublime dimensão humana.
REIS E RAINHA
Direção: Arnaud Desplechin
Distribuidora: Imovision (disponível
só para locação)
Avaliação: ótimo
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