São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Análise

Quando a metáfora se torna literal

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Um crítico literário canadense, Northrop Frye, descreve a "metáfora total" como sendo aquela em que o recurso representativo é tão perfeito que acaba por fundir-se ao próprio objeto representado. Com a metáfora total, a palavra não está para a coisa, ou no lugar dela, mas É ela. No caso do filme de Nuno Ramos e Eduardo Climachauska, "Iluminai os Terreiros", trata-se de um caso ainda mais radical, como têm sido, aliás, os últimos trabalhos do artista. A metáfora é tão plena que chega a não ser mais metafórica; ela é literal. Chegamos ao caso máximo da representação, em que quase nada mais se representa. Iluminai os terreiros fica sendo então: iluminai os terreiros.
O filme acontece quase que inteiramente como o processo, e o trabalho literal (no sentido de esforço) de iluminar uma circunferência de terra. É o barulho de máquinas, a terra seca e feia, os caminhões passando, o frio, o cinza da madrugada, furar a terra, espalhar pó, levantar com muito esforço os postes de madeira, riscar a circunferência, ligar as luzes.
Praticamente não há diálogos. Só barulho, espessura, peso, sujeira e a luz -branca, forte e terrivelmente artificial, em nada lembrando as estrelas. O filme, aliás, é uma espécie de elogio ao artifício, à arte como máquina, ação e trabalho. O tempo todo é como se fosse o ensaio de um filme. O espectador, extenuado, se pergunta: "mas quando isso vai começar?". E não começa. O filme é isso mesmo, sempre um ensaio; é a dificuldade, a imensidão da tarefa de só fazer.
Em um dado momento, uma velha parada olha para a câmera. Em outro, dois homens cantam e falam. Uma voz grita: "Chega!".
São belos ou ridículos? São as duas coisas. Tanta luz transforma tudo em beleza e em feiúra.
Nos trabalhos de Nuno Ramos há mesmo pouca elegância. Nunca se acha o "minimal" tão a gosto das últimas tendências. Quase tudo é grande, difícil, pesado e feio. É o desafio da briga com o mundo, com as coisas que resistem, com os amores que nunca dão certo, com as perguntas sem resposta.
Ao final, Eduardo Climachauska arrasta, empurra, carrega um poste de luz através de um túnel vazio e arrasado. É um Cristo moderno carregando sua cruz de luz por um espaço ermo e destruído. E por quê? Provavelmente para nada.
Se a canção original, de Assis Valente, exortava o Brasil a iluminar seus terreiros como uma chance de encontro consigo, neste filme o terreiro se ilumina. Mas não se sabe o que se encontra.


Texto Anterior: Nuno Ramos apresenta filmes em SP
Próximo Texto: Bebida: Paulistas são campeões de concurso de bartender
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.