São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 2006

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NINA HORTA

Um mar de livros e palavras

As palavras hão de estar pojadas de afeto, senão ficam como o macarrão numa sopa de letrinhas, sem sentido

ESTAMOS EM pleno mar... de livros. É a Flip. Foi bom, excepcionalmente bom, e dona Adélia Prado estourou a banca. E botou o dedo na ferida. Ela sabe das coisas, tem certeza que gostamos das palavras quando elas têm peso, significam. As palavras hão de estar pojadas de afeto, senão ficam no ar, voando, ou como o macarrão numa sopa de letrinhas, boiando sem formar sentido, sem servir para nada.
Então, os ouvintes se identificaram mais com os de coração bem aberto, a Lillian Ross, por exemplo, teimou: "Só escrevo sobre o que amo". O resto que se dane. Então aqui é Parati, velha senhora à beira-mar plantada, como eu e várias outras. Gosto de lugares que abrigam mulheres velhas de tênis. A Flip deste ano parece que focalizou autores de 80 anos (por aí), ou nascidas nos 80 (por aí). Boa mistura, que dá caldo. Daqui desta terrinha, já comentei todas as vielas e comeres e cantares. Esta espuma grossa de chantilly batido que se forma na rabeira dos barcos, do verde do capim verde, esses golfinhos que nos escoltam hoje, materializando-se em grandes curvas gelatinosas elásticas, saídos de um "taller" de Ferran Adrià, água do mar numa textura nova. E, à noite, numa esquina poeirenta, fim de baile, tive a sensação esquisita de ver as vísceras da cidade, como se o tempo explodisse em flores de fuxico e todas as festas do ano se fundissem numa Flip do Divino. É muita confusão para a cabeça alegre do paratiense, já festeiro por natureza, que adora um drama, mais cigarra que formiga. Sempre apreciaram uma "azáfama", que é como chamam os preparativos para a folia de reis, as danças, os disfarces, as máscaras, os jogos. Trabalho é assim, assim, mais para sustentar a boa vida. Era preciso dar uma palhinha, ser visto, pois os russos chegaram, vá que não nos vejam e só se lembrem desta turma disciplinada de crianças e moços e velhos que inventaram e levaram adiante esta megafesta, fizeram dela um sucesso, a Casa Azul e todo o resto. E o que será de nós, os Boronofes, os Mascaradinhos, a Miota, mascarado pé-de-pato, comedor de carrapato... E vi meninos de Clóvis, fantasmas de cabeça redonda e pernas-de-pau, dragões verde-limão, cirandas e seus pandeiros, e aos pés da Santa Cruz... Tive medo de escutar as matracas da Paixão, ver o andor com o filho morto e a mãe chorosa fora de hora, religião de se mostrar, não de se sentir. Mas, não, aos poucos vão sabendo que Flip é Flip e costumes da terra, costumes da terra. Os da cidade trabalharam muito bem, os autores falaram até aos peixes, como no sermão de Santo Antônio, mas dar de comer ainda não entrou com nota dez no repertório. Arrumaram tendas de comida de rua, tudo muito limpo, luvas de plástico. Churrasquinhos cheirosos sobre brasas, pastéis de 35 cm (uau!), caldo de feijão, espetos de coração de galinha, tudo pode ser muito bom ou muito ruim, depende da hora, do dia, do minuto. E a lerdeza! Dos restaurantes seria injusto falar sem visitar todos. Tem dos dependurados perigosamente sobre as pedras das cachoeiras, os étnicos fajutos, os chiques sem motivo, os chiques de verdade, os populares, e é tudo mais ou menos, como aqui em São Paulo e no mundo inteiro, mas aqui para nós, o que importa? Houve um purê de mandioca, doce, mas não muito, passado no processador com ameixa e passas, que quase me botou para correr, mas era bom, experimentem com carne de pato ou porco. Ah, e já ia me esquecendo. É época de fruta-pão, esta desconhecida, deliciosa, frita como batata, ou cozida como mandioca, com manteiga. E debaixo dos caracóis dos cabelos grisalhos de Bethânia, Adélia Prado, Lillian Ross, Liz Calder, Ferreira Gullar, Gabeira, muita história pra contar...

ninahorta@uol.com.br


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