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NINA HORTA
Um mar de livros e palavras
As palavras hão de estar pojadas de afeto, senão ficam como o macarrão numa sopa de letrinhas, sem sentido
ESTAMOS EM pleno mar... de livros. É a Flip. Foi bom, excepcionalmente bom, e dona
Adélia Prado estourou a banca. E
botou o dedo na ferida. Ela sabe das
coisas, tem certeza que gostamos
das palavras quando elas têm peso,
significam. As palavras hão de estar
pojadas de afeto, senão ficam no ar,
voando, ou como o macarrão numa
sopa de letrinhas, boiando sem formar sentido, sem servir para nada.
Então, os ouvintes se identificaram mais com os de coração bem
aberto, a Lillian Ross, por exemplo,
teimou: "Só escrevo sobre o que
amo". O resto que se dane.
Então aqui é Parati, velha senhora
à beira-mar plantada, como eu e várias outras. Gosto de lugares que
abrigam mulheres velhas de tênis. A
Flip deste ano parece que focalizou
autores de 80 anos (por aí), ou nascidas nos 80 (por aí). Boa mistura, que
dá caldo.
Daqui desta terrinha, já comentei
todas as vielas e comeres e cantares.
Esta espuma grossa de chantilly batido que se forma na rabeira dos barcos, do verde do capim verde, esses
golfinhos que nos escoltam hoje,
materializando-se em grandes curvas gelatinosas elásticas, saídos de
um "taller" de Ferran Adrià, água do
mar numa textura nova. E, à noite,
numa esquina poeirenta, fim de baile, tive a sensação esquisita de ver as
vísceras da cidade, como se o tempo
explodisse em flores de fuxico e todas as festas do ano se fundissem
numa Flip do Divino.
É muita confusão para a cabeça
alegre do paratiense, já festeiro por
natureza, que adora um drama, mais
cigarra que formiga. Sempre apreciaram uma "azáfama", que é como
chamam os preparativos para a folia
de reis, as danças, os disfarces, as
máscaras, os jogos. Trabalho é assim, assim, mais para sustentar a
boa vida.
Era preciso dar uma palhinha, ser
visto, pois os russos chegaram, vá
que não nos vejam e só se lembrem
desta turma disciplinada de crianças
e moços e velhos que inventaram e
levaram adiante esta megafesta, fizeram dela um sucesso, a Casa Azul
e todo o resto. E o que será de nós, os
Boronofes, os Mascaradinhos, a
Miota, mascarado pé-de-pato, comedor de carrapato...
E vi meninos de Clóvis, fantasmas
de cabeça redonda e pernas-de-pau,
dragões verde-limão, cirandas e
seus pandeiros, e aos pés da Santa
Cruz...
Tive medo de escutar as matracas
da Paixão, ver o andor com o filho
morto e a mãe chorosa fora de hora,
religião de se mostrar, não de se sentir. Mas, não, aos poucos vão sabendo que Flip é Flip e costumes da terra, costumes da terra.
Os da cidade trabalharam muito
bem, os autores falaram até aos peixes, como no sermão de Santo Antônio, mas dar de comer ainda não entrou com nota dez no repertório.
Arrumaram tendas de comida de
rua, tudo muito limpo, luvas de plástico. Churrasquinhos cheirosos sobre brasas, pastéis de 35 cm (uau!),
caldo de feijão, espetos de coração
de galinha, tudo pode ser muito bom
ou muito ruim, depende da hora, do
dia, do minuto. E a lerdeza!
Dos restaurantes seria injusto falar sem visitar todos. Tem dos dependurados perigosamente sobre as
pedras das cachoeiras, os étnicos fajutos, os chiques sem motivo, os chiques de verdade, os populares, e é
tudo mais ou menos, como aqui em
São Paulo e no mundo inteiro, mas
aqui para nós, o que importa?
Houve um purê de mandioca, doce, mas não muito, passado no processador com ameixa e passas, que
quase me botou para correr, mas era
bom, experimentem com carne de
pato ou porco.
Ah, e já ia me esquecendo. É época
de fruta-pão, esta desconhecida, deliciosa, frita como batata, ou cozida
como mandioca, com manteiga.
E debaixo dos caracóis dos cabelos
grisalhos de Bethânia, Adélia Prado,
Lillian Ross, Liz Calder, Ferreira
Gullar, Gabeira, muita história pra
contar...
ninahorta@uol.com.br
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