São Paulo, sábado, 17 de setembro de 2005

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MÚSICA

Maestro, morto na última terça-feira, ensinou de eruditos a populares e enxergou a nova sociedade tecnológica

Koellreuter manteve sua visão de futuro por toda a vida

LUÍS NASSIF
COLUNISTA DA FOLHA

Meses atrás, foi a musicista cearense Apá Silvino quem me relatou episódios da vida do maestro Hans-Joachim Koellreuter, morto na terça passada e que passava seus últimos dias em um apartamento da r. Riachuelo, perto da av. São Luiz, em São Paulo, já sem contato com o mundo externo.
Nunca houve, no Brasil, educador musical como Koellreuter. Chegou por aqui fugindo da guerra, como outros intelectuais europeus de peso, como Otto Maria Carpeaux. Trouxe novidades musicais, como o dodecafonismo e uma visão universal não apenas da música, mas dos povos. Sabia casar música, filosofia, antropologia, com uma versatilidade e profundidade que o país conhecera, antes, apenas em Mário de Andrade. Ensinou a todos, dos eruditos como Guerra Peixe, Edino Krieger, Cláudio Santoro, aos populares, como K-Ximbinho, Cazé, Tom Jobim. E ensinou Apá.
Nos anos 80, uma vez por semestre ia a Fortaleza ensinar música. Percebeu talento na moça e insistiu para que ela seguisse para São Paulo, para estudar com ele. Apá conseguiu juntar algum dinheiro, cantou um pouco na noite paulistana, foi atropelada pelo bloqueio de cruzados do Collor, voltou para Fortaleza sem terminar o curso, mas se tornou maestrina de quatro corais. Conto a história de Apá para dar uma dimensão da amplitude do projeto pedagógico de Koellreuter.
Nas aulas, ele costumava ver o mundo como uma espiral ascendente. De tempos em tempos, volta-se ao mesmo ponto, mas em um patamar superior ao do período anterior.
Koellreuter nasceu em 1915 em Freiburg, na Alemanha. Sua formação inicial foi de flautista. Chegou ao Brasil em 1937. Em 1939, criou o movimento Música Viva, juntando compositores eruditos e populares. Do grupo inicial participavam Koellreuter e Egídio de Castro e Silva. Depois, entraram Luiz Heitor, Brasílio Itiberê, Luís Cosme e Otávio Bevilácqua.
Alguns anos depois, explodiu uma reação nacionalista, de um grupo de compositores liderados por Camargo Guarnieri que, em 1950, publicou a "Carta Aberta a Todos os Músicos e Críticos Musicais do Brasil", denunciando o gosto da "pequena elite de rebuscados e paranóicos".
Sempre apreciei mais a música nacionalista. O dodecafonismo estava muito além de minha sensibilidade e capacidade de entendimento. Mas o universalismo de Koellreuter era contagiante, sua falta de preconceitos, sua abertura para o mundo, sua erudição enciclopédica.
Teve vários casamentos, um deles com a compositora, arranjadora e poeta Geny Marcondes -que merece uma história à parte. Foi a arranjadora da primeira gravação de "A Banda", das primeiras da Tropicália.
Em 1963, Koellreuter foi contratado pelo Instituto Goethe e visitou a Índia e o Japão. A partir daí, notou limitações no padrão ocidental de música. Este se baseava em padrões tradicionais, de duração, altura, intensidade e timbre das notas. Na música hindu e japonesa encontrou improvisação, tempo psicológico e ritmo. O intérprete se transformava em co-autor.
A partir do final dos anos 70 passou a enxergar, com notável sabedoria, a nova sociedade tecnológica que se avizinhava, com a democratização dos meios de acesso à arte. Para ele, a música seria um elemento indissociável da economia, como um elemento essencial para conferir ao homem o sentido comunitário, social e cultural de sua participação no mundo. Previa o crescimento cada vez maior da música popular e da música funcional, como trilhas para teatro e filme, musicoterapia para a medicina, jingles.
Manteve a visão de futuro por toda a vida.


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