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CINEMA
Cópia de versão completa de "Soberba" pode ter sido deixada no Brasil; mulher do cineasta tenta terminar "The Other Side of the Wind"
Família de Welles tenta concluir filmes
GEOFFREY MACNAB
DO "THE INDEPENDENT"
Brasil, início de 1942. Orson Welles está rodando um documentário, "É Tudo Verdade", e as coisas
estão dando errado. Os inimigos
de Welles no estúdio RKO se preparam para cortar seu financiamento. Os jornais americanos retratam o jovem cineasta como um
perdulário libertino e mulherengo, que está vivendo luxuosamente no Rio enquanto os EUA apertam o cinto por conta da guerra.
Enquanto isso, em Hollywood,
seu segundo longa, "Soberba"
("The Magnificent Ambersons"),
está sendo selvagemente reeditado sem seu conhecimento. Um
dos quatro jangadeiros brasileiros
cuja viagem épica do Nordeste
brasileiro até o Rio está sendo recriada no documentário se afoga
num acidente esdrúxulo. Quando
o cineasta lhe fala que o dinheiro
acabou, um pai-de-santo que deveria participar do filme lança
uma maldição sobre Welles, enfiando no roteiro uma agulha
com linha vermelha.
A carreira de Welles foi cercada
de infortúnios para sempre a partir daquele momento. Desde sua
morte, em 1985, seus filmes têm
sido objeto de disputas legais, e
boa parte de sua obra continua
sem ser vista. No início da década
de 90, um grupo de cineastas que
montava um documentário sobre
a criação de "É Tudo Verdade"
contratou uma mãe-de-santo para desfazer a maldição.
No mês passado, quando houve
uma grande retrospectiva da obra
de Welles no Festival de Locarno,
na Suíça, um dos maiores especialistas em Welles preferiu não
comparecer. "Ele se recusou a vir
porque acha que tudo que fala de
Orson Welles é amaldiçoado", comentou Oja Kodar, a amante,
musa e companheira de Welles na
segunda fase de sua vida. Kodar
lamenta a relativa obscuridade
em que o cineasta está caindo.
"Hoje em dia as pessoas não o conhecem. Você encontra gente de
19 anos, e eles não têm idéia de
quem foi Welles. Precisam fazer
uma busca em sua memória."
Em Locarno foram exibidos trechos de "Don Quixote", filme que
Welles deixou incompleto. Foi estranhamente comovente ver Quixote (Francisco Reiguera) e Sancho Pança (Akim Tamiroff) cavalgando seus animais magros e
cansados no meio de uma cidade
moderna. Quixote olha para os faróis de trânsito, as telas de televisão, os outdoors, e não entende
nada. Ele é um homem fora de seu
tempo. O mesmo pode ser dito de
muitos dos personagens de Welles, quer sejam os Amberson,
perplexos com a chegada do automóvel, ou Falstaff, com saudades
de uma Inglaterra do passado em
"Chimes at Midnight".
O próprio Welles parecia estar
tão perdido quanto seus personagens. Ele projetava poder, mas raramente o possuía. Na tela, era
uma presença saturnina e imponente, acostumada a representar
reis e heróis trágicos, mas isso não
significava que fosse capaz de financiar seus próprios filmes.
Joseph McBride, especialista em
Welles que atuou no último (e
ainda inédito) filme do diretor,
"The Other Side Of The Wind",
não atribui importância à história
sobre o pai-de-santo brasileiro.
"Havia uma maldição que pesava
sobre ele, sim, mas acho que ela
vinha mais do capitalismo", diz.
McBride argumenta que o problema de Orson Welles era simplesmente que seus filmes não
eram especialmente comerciais.
Ele sonhava em ser um grande artista popular, um Charles Dickens
do cinema, mas sua obra era depressiva demais para isso.
Os poderosos de Hollywood rejeitavam o "garoto prodígio" que
criara "Cidadão Kane" em 1941.
"Soberba", que ele achou que seria sua obra-prima, fez sua pré-estréia em Pomona, Califórnia, em
sessão dupla com um trabalho ligeiro estrelado por Dorothy Lamour, intitulado "The Fleet's In".
O público era composto por jovens que esperavam assistir a um
musical otimista. "Soberba" foi
saudado com bocejos e vaias.
A RKO ficou tão alarmada que
começou a encurtar e reeditar o
filme. O que começou como épico
de 131 minutos de duração acabou sendo lançado com pouco
mais de 80 minutos. Mesmo assim, teve desempenho razoável
nas grandes cidades.
Welles viajou para o Brasil a pedido do secretário-assistente de
Estado Nelson Rockefeller. Washington queria a todo custo impedir que a América Latina se deixasse seduzir pelo fascismo. Assim que ele pôs os pés no Brasil a
RKO começou a sabotar "Soberba". Mais tarde ele iria lamentar o
que aconteceu, dizendo: "O estúdio acabou com "Soberba", e "Soberba" acabou comigo".
McBride levanta a possibilidade
sedutora de que uma versão completa de "Soberba" possa ainda
existir em algum lugar da América do Sul. A RKO queimou o negativo no início dos anos 40, mas
sabe-se que Orson Welles levou
uma cópia com ele para o Brasil.
"Oficialmente, ele deveria ter
entregue a cópia, mas é difícil
acreditar que ele o teria feito", diz
McBride. "Torcemos para que ele
não o tenha feito e que a cópia tenha permanecido na América do
Sul. Estudiosos de Welles estão
procurando a cópia no Brasil."
Os parentes do cineasta, ex-colaboradores e especialistas que se
reuniram em Locarno no mês
passado estão determinados a trazer a público o máximo possível
de seu trabalho ainda não visto.
"Acredito que o trabalho de
meu pai deveria ser exibido em
todas as oportunidades possíveis,
mesmo seus trabalhos inacabados. Tudo deveria ser exibido,
porque tudo é valioso", diz a filha
mais velha do diretor, Chris Welles. Kodar doou seu material relativo a Welles ao Museu do Cinema de Munique, sob a condição
de que seja preservado e disponibilizado para o público.
Enquanto tentava fazer seus
próprios filmes, Welles assumia
papéis de ator para pagar suas
contas. "Não sou rico. Nunca fui",
dizia. "Quando você me vê num
filme ruim como ator (não como
diretor, espero), é porque me foi
oferecido um filme bom. Freqüentemente faço filmes ruins
para poder viver."
Obra inacabada
Foram exibidos em Locarno 40
minutos de seu longa inacabado
"The Other Side of the Wind".
Como a maioria dos filmes de
Welles, esse teve uma história
conturbada. As filmagens já estavam mais ou menos completas
em 1972, mas o co-financista iraniano Mehdi Bousheri (cunhado
do já morto xá do Irã) não permitiu que o filme fosse exibido enquanto seu dinheiro não lhe fosse
reembolsado. Lamentavelmente,
um dos produtores tinha falsificado a assinatura nos contratos e
desaparecido com o dinheiro.
A história que antecedeu "The
Other Side of the Wind" é fascinante. A intenção original de Welles era satirizar o mundo dos toureadores e das celebridades que os
cercavam. O personagem central
seria baseado em Ernest Hemingway. Quando "The Other Side of
the Wind" entrou em produção, o
cenário do filme já havia sido
transposto para a Hollywood do
final dos anos 60. O personagem
central, Jake Hannaford, era um
diretor de cinema que estava tentando reanimar sua carreira.
Oja Kodar vem procurando há
muitos anos concluir "The Other
Side of the Wind". Ela mostrou
trechos a Oliver Stone. "No final,
ele disse: "Não sei o que eu poderia
fazer com isso. É experimental demais"." Ela também tentou fazer
Clint Eastwood se interessar pelo
projeto, mas não conseguiu.
O resultado é que o último longa de Welles como diretor continua parado na gaveta, ao lado de
"Chimes at Midnight", "The
Deep" e "The Merchant of Venice". A velha maldição brasileira,
ao que parece, continua operante.
Mas existe uma maneira de revertê-la. Para isso, tudo o que é preciso é o único bem do qual Welles
nunca teve o suficiente: dinheiro.
O roteiro de "The Other Side Of
The Wind" está sendo publicado
pelo Festival Internacional de Locarno. Cópias podem ser pedidas
pelo e-mail info@pardo.ch.
Tradução Clara Allain
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