São Paulo, sábado, 17 de setembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA

Cópia de versão completa de "Soberba" pode ter sido deixada no Brasil; mulher do cineasta tenta terminar "The Other Side of the Wind"

Família de Welles tenta concluir filmes

GEOFFREY MACNAB
DO "THE INDEPENDENT"

Brasil, início de 1942. Orson Welles está rodando um documentário, "É Tudo Verdade", e as coisas estão dando errado. Os inimigos de Welles no estúdio RKO se preparam para cortar seu financiamento. Os jornais americanos retratam o jovem cineasta como um perdulário libertino e mulherengo, que está vivendo luxuosamente no Rio enquanto os EUA apertam o cinto por conta da guerra.
Enquanto isso, em Hollywood, seu segundo longa, "Soberba" ("The Magnificent Ambersons"), está sendo selvagemente reeditado sem seu conhecimento. Um dos quatro jangadeiros brasileiros cuja viagem épica do Nordeste brasileiro até o Rio está sendo recriada no documentário se afoga num acidente esdrúxulo. Quando o cineasta lhe fala que o dinheiro acabou, um pai-de-santo que deveria participar do filme lança uma maldição sobre Welles, enfiando no roteiro uma agulha com linha vermelha.
A carreira de Welles foi cercada de infortúnios para sempre a partir daquele momento. Desde sua morte, em 1985, seus filmes têm sido objeto de disputas legais, e boa parte de sua obra continua sem ser vista. No início da década de 90, um grupo de cineastas que montava um documentário sobre a criação de "É Tudo Verdade" contratou uma mãe-de-santo para desfazer a maldição.
No mês passado, quando houve uma grande retrospectiva da obra de Welles no Festival de Locarno, na Suíça, um dos maiores especialistas em Welles preferiu não comparecer. "Ele se recusou a vir porque acha que tudo que fala de Orson Welles é amaldiçoado", comentou Oja Kodar, a amante, musa e companheira de Welles na segunda fase de sua vida. Kodar lamenta a relativa obscuridade em que o cineasta está caindo. "Hoje em dia as pessoas não o conhecem. Você encontra gente de 19 anos, e eles não têm idéia de quem foi Welles. Precisam fazer uma busca em sua memória."
Em Locarno foram exibidos trechos de "Don Quixote", filme que Welles deixou incompleto. Foi estranhamente comovente ver Quixote (Francisco Reiguera) e Sancho Pança (Akim Tamiroff) cavalgando seus animais magros e cansados no meio de uma cidade moderna. Quixote olha para os faróis de trânsito, as telas de televisão, os outdoors, e não entende nada. Ele é um homem fora de seu tempo. O mesmo pode ser dito de muitos dos personagens de Welles, quer sejam os Amberson, perplexos com a chegada do automóvel, ou Falstaff, com saudades de uma Inglaterra do passado em "Chimes at Midnight".
O próprio Welles parecia estar tão perdido quanto seus personagens. Ele projetava poder, mas raramente o possuía. Na tela, era uma presença saturnina e imponente, acostumada a representar reis e heróis trágicos, mas isso não significava que fosse capaz de financiar seus próprios filmes.
Joseph McBride, especialista em Welles que atuou no último (e ainda inédito) filme do diretor, "The Other Side Of The Wind", não atribui importância à história sobre o pai-de-santo brasileiro. "Havia uma maldição que pesava sobre ele, sim, mas acho que ela vinha mais do capitalismo", diz.
McBride argumenta que o problema de Orson Welles era simplesmente que seus filmes não eram especialmente comerciais. Ele sonhava em ser um grande artista popular, um Charles Dickens do cinema, mas sua obra era depressiva demais para isso.
Os poderosos de Hollywood rejeitavam o "garoto prodígio" que criara "Cidadão Kane" em 1941. "Soberba", que ele achou que seria sua obra-prima, fez sua pré-estréia em Pomona, Califórnia, em sessão dupla com um trabalho ligeiro estrelado por Dorothy Lamour, intitulado "The Fleet's In". O público era composto por jovens que esperavam assistir a um musical otimista. "Soberba" foi saudado com bocejos e vaias.
A RKO ficou tão alarmada que começou a encurtar e reeditar o filme. O que começou como épico de 131 minutos de duração acabou sendo lançado com pouco mais de 80 minutos. Mesmo assim, teve desempenho razoável nas grandes cidades.
Welles viajou para o Brasil a pedido do secretário-assistente de Estado Nelson Rockefeller. Washington queria a todo custo impedir que a América Latina se deixasse seduzir pelo fascismo. Assim que ele pôs os pés no Brasil a RKO começou a sabotar "Soberba". Mais tarde ele iria lamentar o que aconteceu, dizendo: "O estúdio acabou com "Soberba", e "Soberba" acabou comigo".
McBride levanta a possibilidade sedutora de que uma versão completa de "Soberba" possa ainda existir em algum lugar da América do Sul. A RKO queimou o negativo no início dos anos 40, mas sabe-se que Orson Welles levou uma cópia com ele para o Brasil.
"Oficialmente, ele deveria ter entregue a cópia, mas é difícil acreditar que ele o teria feito", diz McBride. "Torcemos para que ele não o tenha feito e que a cópia tenha permanecido na América do Sul. Estudiosos de Welles estão procurando a cópia no Brasil."
Os parentes do cineasta, ex-colaboradores e especialistas que se reuniram em Locarno no mês passado estão determinados a trazer a público o máximo possível de seu trabalho ainda não visto.
"Acredito que o trabalho de meu pai deveria ser exibido em todas as oportunidades possíveis, mesmo seus trabalhos inacabados. Tudo deveria ser exibido, porque tudo é valioso", diz a filha mais velha do diretor, Chris Welles. Kodar doou seu material relativo a Welles ao Museu do Cinema de Munique, sob a condição de que seja preservado e disponibilizado para o público.
Enquanto tentava fazer seus próprios filmes, Welles assumia papéis de ator para pagar suas contas. "Não sou rico. Nunca fui", dizia. "Quando você me vê num filme ruim como ator (não como diretor, espero), é porque me foi oferecido um filme bom. Freqüentemente faço filmes ruins para poder viver."

Obra inacabada
Foram exibidos em Locarno 40 minutos de seu longa inacabado "The Other Side of the Wind". Como a maioria dos filmes de Welles, esse teve uma história conturbada. As filmagens já estavam mais ou menos completas em 1972, mas o co-financista iraniano Mehdi Bousheri (cunhado do já morto xá do Irã) não permitiu que o filme fosse exibido enquanto seu dinheiro não lhe fosse reembolsado. Lamentavelmente, um dos produtores tinha falsificado a assinatura nos contratos e desaparecido com o dinheiro.
A história que antecedeu "The Other Side of the Wind" é fascinante. A intenção original de Welles era satirizar o mundo dos toureadores e das celebridades que os cercavam. O personagem central seria baseado em Ernest Hemingway. Quando "The Other Side of the Wind" entrou em produção, o cenário do filme já havia sido transposto para a Hollywood do final dos anos 60. O personagem central, Jake Hannaford, era um diretor de cinema que estava tentando reanimar sua carreira.
Oja Kodar vem procurando há muitos anos concluir "The Other Side of the Wind". Ela mostrou trechos a Oliver Stone. "No final, ele disse: "Não sei o que eu poderia fazer com isso. É experimental demais"." Ela também tentou fazer Clint Eastwood se interessar pelo projeto, mas não conseguiu.
O resultado é que o último longa de Welles como diretor continua parado na gaveta, ao lado de "Chimes at Midnight", "The Deep" e "The Merchant of Venice". A velha maldição brasileira, ao que parece, continua operante. Mas existe uma maneira de revertê-la. Para isso, tudo o que é preciso é o único bem do qual Welles nunca teve o suficiente: dinheiro.
O roteiro de "The Other Side Of The Wind" está sendo publicado pelo Festival Internacional de Locarno. Cópias podem ser pedidas pelo e-mail info@pardo.ch.


Tradução Clara Allain

Texto Anterior: Evento: Programa leva cultura da periferia para o centro
Próximo Texto: Estréias/"O Quarto Verde": Obsessão pela morte contamina construção de Truffaut
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.