São Paulo, sábado, 17 de setembro de 2005

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ESTRÉIAS/"O QUARTO VERDE"

Obsessão pela morte contamina construção de Truffaut

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Esta é a história de um homem habitado por uma idéia fixa. E as obsessões, como prova "O Quarto Verde" (78), são mais ou menos como os filmes, longas e meticulosas construções. O que perturba hoje neste filme de François Truffaut não é tanto a mórbida obsessão do protagonista, às voltas com seus mortos, mas a maneira como essa idéia fixa contamina e limita a obra.
No papel principal, Truffaut empresta um lastro autoral a cada fala de seu lúgubre Julien Davenne. A forma convicta, mas um tanto mecânica e monocórdica (quase bressoniana) com que interpreta Davenne, ajuda a fortalecer a sensação de que o filme gira em torvelinho, ao redor de um mesmo e único motivo, a morte.
Mais do que uma adaptação de Henry James (da novela "The Autel of the Dead"), o filme é uma homenagem ao universo do escritor americano. Como o próprio James, devotado ao culto de sua jovem noiva morta, Davenne é um homem marcado pela perda. Tendo sobrevivido à Primeira Guerra, mas perdido a mulher e a maior parte dos amigos, trabalha como obituarista de uma pequena revista do interior francês, consagrando sua vida aos mortos em detrimento dos vivos.
É com esse personagem que o Truffaut do final dos anos 70 se identifica. "Acabo de completar 46 anos e já me sinto cercado de desaparecidos", dizia. Ao rever um de seus filmes ("Atirem no Pianista"), se dera conta de que metade do elenco estava morta. Ao revermos "O Quarto Verde", nos damos conta de que Truffaut, consciente de que, em uma película, não se imprimem senão fantasmas, já ensaiava (seis anos antes de morrer) uma despedida.
No altar que ergue a seus mortos, Davenne sonha acrescentar a própria foto: neste filme, em que a morte se confunde constantemente com a imagem dos mortos, tudo se passa como se Truffaut projetasse no rito fúnebre de Davenne a sua própria morte. Como notou a atriz Nathalie Baye, cuja personagem no filme é a única a tentar tirar o viúvo do lugar, a relação de François Truffaut com o personagem era tão íntima que ele foi incapaz de interpor qualquer ator entre os dois.
Do altar que o pequeno Antoine Doinel, o célebre alter ego do cineasta, ergueu a Balzac no longa de estréia "Os Incompreendidos" (1959), ao altar de Julien Davenne, também povoado por escritores famosos (Henry James, Proust, Oscar Wilde, Apollinaire), Truffaut continua reverentemente devotado aos grandes espíritos. A diferença é que seu panteão soma agora alguns espíritos que o iluminaram em vida, padrinhos como Jean Cocteau, André Bazin e Roberto Rossellini. No canto fúnebre de "O Quarto Verde", Truffaut paga tributo a esses mortos e se apronta para se juntar a eles. Ele, que veio de uma geração que trocou religião por cinema, concebe aqui uma forma particular de missa, fazendo ao mesmo tempo o papel do padre e do morto.
Este é um filme em que Truffaut se expõe terrivelmente. Talvez por isso seu previsível fracasso comercial tenha lhe doído tanto. Hoje, seria preciso aplicar a "O Quarto Verde" um axioma crítico que Truffaut inventou para defender os filmes menores dos autores de sua predileção: o do filme que é imperfeito, mas na exata medida em que é mais autoral.


O Quarto Verde
La Chambre Verte
   
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1978
Com: François Truffaut, Nathalie Baye
Onde: em cartaz no Top Cine


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