|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ESTRÉIAS/"O QUARTO VERDE"
Obsessão pela morte contamina construção de Truffaut
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Esta é a história de um homem habitado por uma idéia
fixa. E as obsessões, como prova
"O Quarto Verde" (78), são mais
ou menos como os filmes, longas
e meticulosas construções. O que
perturba hoje neste filme de François Truffaut não é tanto a mórbida obsessão do protagonista, às
voltas com seus mortos, mas a
maneira como essa idéia fixa contamina e limita a obra.
No papel principal, Truffaut
empresta um lastro autoral a cada
fala de seu lúgubre Julien Davenne. A forma convicta, mas um
tanto mecânica e monocórdica
(quase bressoniana) com que interpreta Davenne, ajuda a fortalecer a sensação de que o filme gira
em torvelinho, ao redor de um
mesmo e único motivo, a morte.
Mais do que uma adaptação de
Henry James (da novela "The Autel of the Dead"), o filme é uma
homenagem ao universo do escritor americano. Como o próprio
James, devotado ao culto de sua
jovem noiva morta, Davenne é
um homem marcado pela perda.
Tendo sobrevivido à Primeira
Guerra, mas perdido a mulher e a
maior parte dos amigos, trabalha
como obituarista de uma pequena revista do interior francês, consagrando sua vida aos mortos em
detrimento dos vivos.
É com esse personagem que o
Truffaut do final dos anos 70 se
identifica. "Acabo de completar
46 anos e já me sinto cercado de
desaparecidos", dizia. Ao rever
um de seus filmes ("Atirem no
Pianista"), se dera conta de que
metade do elenco estava morta.
Ao revermos "O Quarto Verde",
nos damos conta de que Truffaut,
consciente de que, em uma película, não se imprimem senão fantasmas, já ensaiava (seis anos antes de morrer) uma despedida.
No altar que ergue a seus mortos, Davenne sonha acrescentar a
própria foto: neste filme, em que a
morte se confunde constantemente com a imagem dos mortos,
tudo se passa como se Truffaut
projetasse no rito fúnebre de Davenne a sua própria morte. Como
notou a atriz Nathalie Baye, cuja
personagem no filme é a única a
tentar tirar o viúvo do lugar, a relação de François Truffaut com o
personagem era tão íntima que
ele foi incapaz de interpor qualquer ator entre os dois.
Do altar que o pequeno Antoine
Doinel, o célebre alter ego do cineasta, ergueu a Balzac no longa
de estréia "Os Incompreendidos"
(1959), ao altar de Julien Davenne,
também povoado por escritores
famosos (Henry James, Proust,
Oscar Wilde, Apollinaire), Truffaut continua reverentemente devotado aos grandes espíritos. A
diferença é que seu panteão soma
agora alguns espíritos que o iluminaram em vida, padrinhos como Jean Cocteau, André Bazin e
Roberto Rossellini. No canto fúnebre de "O Quarto Verde", Truffaut paga tributo a esses mortos e
se apronta para se juntar a eles.
Ele, que veio de uma geração que
trocou religião por cinema, concebe aqui uma forma particular
de missa, fazendo ao mesmo tempo o papel do padre e do morto.
Este é um filme em que Truffaut
se expõe terrivelmente. Talvez
por isso seu previsível fracasso comercial tenha lhe doído tanto.
Hoje, seria preciso aplicar a "O
Quarto Verde" um axioma crítico
que Truffaut inventou para defender os filmes menores dos autores
de sua predileção: o do filme que é
imperfeito, mas na exata medida
em que é mais autoral.
O Quarto Verde
La Chambre Verte
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1978
Com: François Truffaut, Nathalie Baye
Onde: em cartaz no Top Cine
Texto Anterior: Cinema: Família de Welles tenta concluir filmes Próximo Texto: "Quatro Irmãos": Singleton desliza por "irmandade" ligada à vingança Índice
|