São Paulo, segunda-feira, 17 de setembro de 2007

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Barreto filma chacina da Candelária

"174" conta trajetória de Sandro Nascimento, que sobreviveu ao massacre no centro do Rio e mais tarde seqüestrou o ônibus 174

Reportagem acompanha as filmagens realizadas durante a madrugada; "Esse é o melhor roteiro que já filmei", diz o diretor

Luciana Whitaker - 7.set.07/Folha Imagem
Bruno Barreto dirige atores que interpretam meninos de rua na reconstituição da chacina da Candelária, durante as filmagens de "174"


SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

No relógio da igreja da Candelária passava da meia-noite quando homens desceram de um Chevette e atiraram contra os quase 50 garotos que dormiam nas imediações, matando sete deles. Os suspeitos eram oficiais da Polícia Militar. Isso foi há 14 anos.
No feriado cívico de Sete de Setembro, na semana retrasada, o relógio da igreja marcava meia-noite quando o cineasta Bruno Barreto avisou à sua equipe, instalada na praça Pio 10 (que cerca a Candelária): "Temos seis horas para fazer essa cena". Porque, quando o sol substituísse a escuridão, por volta das 6h, não daria mais para fingir que aquela sexta-feira era a de 23 de julho de 1993.
E não deu mesmo. Às 6h30, a equipe recolheu equipamentos e deixou o local antes que Patola (Douglas Silva) pudesse morrer mais uma vez diante da câmera, num segundo ângulo que o diretor queria obter.
Ao longo da noite, Silva tombou diversas vezes. Durante os ensaios, foi reconhecido outras tantas por quem circulou por ali, de ônibus ou em carros de bacana. "Acerola!", gritavam das janelas, chamando o ator pelo nome de seu personagem na série e no filme "Cidade dos Homens" (em cartaz).
Mas em "174", longa que Barreto deve terminar de rodar nos próximos dias, Silva morre bem antes do fim da história, porque é Michel Gomes quem encarna a trajetória do protagonista Sandro Nascimento, sobrevivente da chacina da Candelária que iria se tornar conhecido anos mais tarde como o seqüestrador do ônibus 174.
Na trajetória de Nascimento -recontada no documentário "Ônibus 174", de José Padilha, autor também do inédito nos cinemas "Tropa de Elite"-, Barreto enxergou "um drama humano". Aliás, dois.
No documentário, chamou também a atenção do diretor a história da mulher que adotou informalmente Sandro, colocando-o no lugar de um filho que havia perdido ainda bebê.

Choro no set
Barreto chamou o roteirista Bráulio Mantovani, indicado para o Oscar por "Cidade de Deus", para alinhavar as duas histórias num novo filme, desta vez ficcional, embora partindo de fatos reais.
O resultado empolgou o diretor. "É o melhor roteiro que já filmei", afirma Barreto, que tem 17 longas no currículo, entre eles "Dona Flor e Seus Dois Maridos" e "O que É Isso, Companheiro?".
É também a primeira vez que ele filma com a emoção tão à flor da pele. "Nunca antes me havia acontecido de chorar num set", diz, depois de exibir para a Folha, na sala em que o filme está sendo montado, a cena que o fez derramar lágrimas.
Sandro está num beco sem saída. Em crise com a namorada e com o melhor amigo, não tem para onde ir. Decide então procurar a mulher que julga (equivocadamente, ele sabe) ser sua mãe.
Ela o recebe com a sensação da recompensa pela longa espera e a demonstração do afeto represado. Quando ela o abraça, emocionada, ele permanece de braços estendidos, em dúvida entre se entregar e resistir.
Nessa noite, Barreto foi dormir refletindo sobre por que se comovera tanto com a cena.
No dia seguinte, telefonou para sua mãe, a produtora de cinema Lucy Barreto, contou o episódio e fez a íntima confissão: "Eu me reconheci nele. Acho que nunca me entreguei completamente a você como filho".
Lucy achou que não era tarde.

Risos e tiros
Na cena que reconstituiu a chacina da Candelária, não foram as lágrimas o incômodo, mas sim o riso que as crianças escaladas como figurantes não conseguiam conter quando saíam em correria na direção da igreja, após ouvir o barulho de um tiro falso.
A disparada era de 30 meninos e meninas, moradores das favelas cariocas que servem de cenário ao filme. O diretor interrompia os ensaios: "Vocês não podem rir. Vocês estão em pânico, fugindo. Esses homens estão vindo matar vocês".
Se para os figurantes o desafio era não rir, para Michel Gomes, em seu primeiro papel como protagonista, o aprendizado era outro. "O mais difícil é manter a mesma concentração para repetir a cena várias vezes. Porque você faz uma, duas vezes e está bem. Mas aí vai cansando. Só que é preciso continuar no pique", descreve.
O diálogo que Sandro e Patola travam pouco antes da chegada dos assassinos foi uma boa oportunidade para Michel se exercitar. A cena foi rodada uma, duas, sete vezes.
Na oitava, Barreto avaliou: "Foi a primeira [que ficou] boa". Aí se fez mais uma, para garantir, porque cinema pode ser um jogo de ilusão, mas não é brincadeira.


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