São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 2002

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Sokúrov busca a alma em obsessão pelo luto

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

O que os poucos filmes de Alexandr Sokúrov, 51, lançados no Brasil já indicavam a retrospectiva de sua obra confirma plenamente: o cineasta russo tem fôlego suficiente para reivindicar seu lugar no panteão dos grandes autores espiritualistas do cinema.
O autor é um espírito em busca de sua verdadeira época, um espírito como o de "Arca Russa" (02), que, após um acidente, adentra, numa infindável subjetiva (um plano-sequência de 90 minutos), um palácio cujas portas funcionam como bifurcações do tempo. O mundo interior de Sokúrov é como o palácio: povoado por espectros de outras eras, obras de arte eternas e ritos oitocentistas.
O cineasta, que costuma comparar a edificação de sua obra à construção de uma casa, chegou a "Arca Russa", ao que pode ser visto, como a versão mais bem-acabada, até agora, de seu projeto.
Sokúrov arquiteta sempre meticulosamente seus filmes, mas suas formas nunca são erigidas no vazio: sua arte é uma (cada vez mais) rara combinação de formalismo e espiritualismo. Até mesmo em seus filmes tidos como "documentais", filmes de encontro, não há como dissociar a forma do espírito: a casa e o corpo do personagem que a câmera perscruta e a alma que ela quer revelar.
É porque busca sempre a alma humana que Sokúrov demonstra, muito dostoievskianamente, nesses encontros, igual interesse pelo cotidiano dos personagens mais célebres (Boris Ieltsin, Andrei Tarkovsky) e o das mais humildes criaturas (a camponesa russa de "Maria", de 88, a velha japonesa de "Uma Vida Humilde", de 97). É também por isso que não distingue os vivos (dos "documentários") dos mortos (da sua ficção).
Entre os mortos em vida deste mundo e os mortos-vivos do outro, a câmera de Sokúrov passeia. Seus filmes são como um sonho-vigília de vigilâmbulos em luto perpétuo -existencial nos autores de maior consciência histórica do pós-Segunda Guerra, essa obsessão pelo luto beira o cosmológico em Sokúrov.
"Quero viver a morte!", nos diz o personagem de "A Voz Solitária do Homem" (78). Censurado por quase uma década pelo regime soviético, esse fragmentar e heterogêneo filme de estréia de Sokúrov concretiza alguns dos anseios da geração do cineasta, a da "nouvelle vague" da Escola de Documentaristas de Leningrado: romper com as escolas realistas (inclusive a do "realismo socialista") e retomar a tradição romanesca.
Na década de 90, a obra de Sokúrov dá um salto em direção à bidimensionalidade, à pintura: o cineasta continua a adaptar obras literárias, sempre fiel à impressão deixada em sua memória pela leitura, mas, entre a erótica adaptação da "Madame Bovary", de Flaubert, em "Salvai e Protegei" (89) e a reinvenção do cenário do "Crime e Castigo", de Dostoiévski, em "Páginas Ocultas" (93), produziu-se uma cisão. O filme que marca essa renovação estética em que se consuma, de certa forma, a formação anti-realista do cineasta, é "A Pedra" (92).
Usando procedimentos que remontam às técnicas de desrealização da imagem fotográfica própria dos antigos pictoralistas, Sokúrov, que sempre se negou a usar os recursos de pós-produção para tratar a imagem, consolida-se como o último dos grandes artesãos do cinema. Surgem, em seu cinema, incomparáveis quadros vivos, inspirados na pintura romântica -como os de Caspar David Friedrich em "Mãe e Filho" (97) e "Moloch" (99). A exemplo dos grandes românticos, Sokúrov criou um mundo que só podemos visitar com a alma.


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