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Sokúrov busca a alma em obsessão pelo luto
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
O que os poucos filmes de
Alexandr Sokúrov, 51, lançados no Brasil já indicavam a retrospectiva de sua obra confirma
plenamente: o cineasta russo tem
fôlego suficiente para reivindicar
seu lugar no panteão dos grandes
autores espiritualistas do cinema.
O autor é um espírito em busca
de sua verdadeira época, um espírito como o de "Arca Russa" (02),
que, após um acidente, adentra,
numa infindável subjetiva (um
plano-sequência de 90 minutos),
um palácio cujas portas funcionam como bifurcações do tempo.
O mundo interior de Sokúrov é
como o palácio: povoado por espectros de outras eras, obras de
arte eternas e ritos oitocentistas.
O cineasta, que costuma comparar a edificação de sua obra à
construção de uma casa, chegou a
"Arca Russa", ao que pode ser visto, como a versão mais bem-acabada, até agora, de seu projeto.
Sokúrov arquiteta sempre meticulosamente seus filmes, mas
suas formas nunca são erigidas no
vazio: sua arte é uma (cada vez
mais) rara combinação de formalismo e espiritualismo. Até mesmo em seus filmes tidos como
"documentais", filmes de encontro, não há como dissociar a forma do espírito: a casa e o corpo do
personagem que a câmera perscruta e a alma que ela quer revelar.
É porque busca sempre a alma
humana que Sokúrov demonstra,
muito dostoievskianamente, nesses encontros, igual interesse pelo
cotidiano dos personagens mais
célebres (Boris Ieltsin, Andrei
Tarkovsky) e o das mais humildes
criaturas (a camponesa russa de
"Maria", de 88, a velha japonesa
de "Uma Vida Humilde", de 97).
É também por isso que não distingue os vivos (dos "documentários") dos mortos (da sua ficção).
Entre os mortos em vida deste
mundo e os mortos-vivos do outro, a câmera de Sokúrov passeia.
Seus filmes são como um sonho-vigília de vigilâmbulos em luto
perpétuo -existencial nos autores de maior consciência histórica
do pós-Segunda Guerra, essa obsessão pelo luto beira o cosmológico em Sokúrov.
"Quero viver a morte!", nos diz
o personagem de "A Voz Solitária
do Homem" (78). Censurado por
quase uma década pelo regime
soviético, esse fragmentar e heterogêneo filme de estréia de Sokúrov concretiza alguns dos anseios
da geração do cineasta, a da "nouvelle vague" da Escola de Documentaristas de Leningrado: romper com as escolas realistas (inclusive a do "realismo socialista")
e retomar a tradição romanesca.
Na década de 90, a obra de Sokúrov dá um salto em direção à
bidimensionalidade, à pintura: o
cineasta continua a adaptar obras
literárias, sempre fiel à impressão
deixada em sua memória pela leitura, mas, entre a erótica adaptação da "Madame Bovary", de
Flaubert, em "Salvai e Protegei"
(89) e a reinvenção do cenário do
"Crime e Castigo", de Dostoiévski, em "Páginas Ocultas" (93),
produziu-se uma cisão. O filme
que marca essa renovação estética
em que se consuma, de certa forma, a formação anti-realista do cineasta, é "A Pedra" (92).
Usando procedimentos que remontam às
técnicas de desrealização da imagem fotográfica própria dos antigos pictoralistas, Sokúrov, que
sempre se negou a usar os recursos de pós-produção para tratar a
imagem, consolida-se como o último dos grandes artesãos do cinema. Surgem, em seu cinema,
incomparáveis quadros vivos,
inspirados na pintura romântica
-como os de Caspar David Friedrich em "Mãe e Filho" (97) e
"Moloch" (99). A exemplo dos
grandes românticos, Sokúrov
criou um mundo que só podemos
visitar com a alma.
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