São Paulo, quinta-feira, 17 de novembro de 2005

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CLÁSSICA REBELDIA

Em "Oliver Twist", diretor recorre ao realismo de Dickens para um mergulho em simbolismos

Polanski parte em busca das origens da dor

Divulgação
O garoto Barney Clark em cena de "Oliver Twist", do diretor Roman Polanski, que estréia amanhã


CÁSSIO STARLING CARLOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Numa interpretação hoje consagrada, o cineasta russo Sergei Eisenstein apontava nos romances de Charles Dickens a estrutura que depois viria a ser a base do cinema clássico, construído sobre uma lei genérica que garante que a toda ação corresponde uma emoção.
A idéia ganha importância diante da questão que se pode fazer para a refilmagem de um clássico de Dickens, "Oliver Twist", por Polanski. Não se trata de um ato de anacronismo?
Sim, pode ser a resposta. Para Polanski, porém, a intenção de fazer um "filme sem ketchup" demonstra a insatisfação com os filmes de pura ação, produzidos hoje em massa, que teriam roubado do cinema o vigor daquela lei genérica que o mantinha vivo desde a origem.
Mas é num outro sentido, talvez mais importante para o diretor, que seu filme adquire vigor. Um retorno a Dickens do ponto de vista narrativo parece válido em certas circunstâncias, mas é enquanto apropriação artística, transformadora, que o "Oliver Twist" de Polanski salta aos olhos.
Filmar como forma de exorcismo pessoal é atributo do diretor desde os anos 60 e, com o passar do tempo, seus filmes ganharam status de espelhos cada vez menos disfarçados de seus traumas particulares. O ápice dessa tendência parecia ser "O Pianista", no qual Polanski traduzia em imagens sua experiência de prisioneiro de gueto judaico durante a ocupação nazista da Polônia na Segunda Guerra Mundial, a destruição de sua família e a sobrevivência graças ao "poder da arte".
"Oliver Twist" é um aprofundamento dessa forma, só que ampliada por um golpe de mestre: o recurso ao realismo de Dickens e do cinema para um mergulho carregado de simbolismos. Em vez de uma época datada -a do totalitarismo hitlerista-, um tempo original -o da ascensão do capitalismo na Londres imperial. No lugar de um protagonista específico -artista e judeu-, um personagem universal -uma criança.
Pois aqui a aparência serve para deflagrar uma série de associações no espectador. Tal como a gravura original em preto-e-branco que se ilumina, enche-se de cores e se anima na primeira cena do filme, os percalços de Oliver se tornam um símbolo do indivíduo moderno, com suas tentativas de ser ele mesmo sendo destruídas por outras forças.
É como metáfora do indivíduo abandonado à própria sorte, jogado num orfanato (cuja entrada nada fica a dever à de Auschwitz), tendo que sobreviver em um meio movido a espertezas (um bando de foras-da-lei) e perseguido por vários poderes (polícia, Justiça) que "Oliver Twist" amplia o escopo pessoal explícito de "O Pianista" (2002).
O bem e o mal aqui se deslocam de sua imutabilidade metafísica (demasiado presente no filme anterior) para se mover de um lado para o outro das relações de Oliver, sem se fixar em nenhum dos personagens que o rodeiam. O salvador da miséria pode ser o algoz. O explorador se transmuta imperceptivelmente em protetor. Por isso Fagin (numa criação assombrosa de Ben Kingsley) é um dos personagens antipáticos mais simpáticos dessa história.
A infância nas origens do capitalismo não funciona apenas como recuo no tempo, pois a angústia de Oliver diante da incapacidade de segurar as rédeas de seu destino já é aquela que o pianista Szpilman experimenta sob o nazismo. E depois?


Oliver Twist
Oliver Twist
   
Direção: Roman Polanski
Produção: Inglaterra/França/Itália, 2005
Com: Ben Kingsley, Barney Clark, Jamie Foreman
Quando: a partir de amanhã nos cines Anália Franco, Jardim Sul e circuito


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