São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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MÔNICA BERGAMO

Bel Pedrosa/Folha Imagem
Uma das grandes surpresas da Grande Rio é este carro alegórico, em que esculturas gigantes se movem para mostrar posições sexuais do Kama Sutra em plena Marquês de Sapucaí


Sexo, suor e samba

Sabe aquele desfile irretocável que você vê na televisão durante o Carnaval no Rio? Pois é. Ele é todo pensado, projetado e concretizado em gigantescos e calorentos galpões da zona portuária da cidade. É mais especificamente em duas ruas nos arredores do Cais do Porto -a Barão de Tefé e a Rodrigues Alves-, onde se concentram os barracões das grandes escolas, um coladinho ao outro. Neles são feitos os carros alegóricos, fantasias e todos os adereços dos sambistas. A coluna passou duas tardes nesta Oscar Freire do samba, no calor senegalesco dos barracões. O medo de espiões de outras escolas é geral -todos zelam para manter o "impacto" de seus carros na avenida; o trabalho é árduo, mas feito com prazer, devoção até. Na Beija-Flor, as conversas têm horário marcado para acontecer e música é proibida. Na Imperatriz, não pode mulheres de short e homens sem camisa. Três atrasos resultam no desconto de um dia de salário na Portela.

IMPERATRIZ
De camisa da Mangueira (!), a assessora da Imperatriz Leopoldinense, Ludmilla de Aquino, recebe a coluna. "Sou mangueirense doente, mas aprendi a gostar desta escola", diz. Ela mostra alguns carros, quando surge a carnavalesca Rosa Magalhães. "Não fotografa, senão te mato!" Rosa é uma espécie de Michael Schumacher do samba. Foi tricampeã em 1999-2000-2001, e seus desfiles são considerados perfeitos. Quem é do contra diz que "falta emoção".
"Rola uma dor-de-cotovelo, mas eu não ligo", diz, fumando um cigarro atrás do outro. Fumar, aliás, é proibido no barracão. Mas Rosa tem carta branca. "A mulher do Carvalhão quer me explicar o que é um Carvalhão. É mole? Deve pensar que sou débil mental", diz. "Carvalhão" é o guindaste que leva os destaques para cima dos carros.
Ela reserva uma alfinetada para a Beija-Flor. "Vocês foram lá? Viram os monstros? Todo ano é a mesma coisa, a escola vem cheia de monstros."
No barracão, quem chega depois das 8h não toma café. Namoro é proibido; abraçar e beijar, só a 100 m do lugar. Mulher não trabalha de short, pois desconcentra os homens. Música e celular pode.
Afinal, é preciso manter a disciplina entre os 150 operários que constroem o desfile. Para alimentá-los, as cozinheiras Elisabete de Paula, 41, e Waldenise Harris, 47, preparam 15 kg de arroz por dia, 8 kg de feijão, 20 kg de carne e 10 kg de batata.

BEIJA-FLOR Dois parrudos seguranças guardam a porta do barracão da Beija-Flor. A missão deles? Evitar a entrada de espiões de escolas de samba adversárias. Logo na entrada, uma placa avisa: "Horário de Conversa: das 12h às 13h e das 16h às 16h20. Obs: só conversa sobre trabalho".
"Tem que ser assim. Senão, vira zona", diz o diretor-geral de Carnaval e Harmonia, Luis Carlos, o Laíla, que esconde o sobrenome com "medo de macumba". Não se ouve um pio. Todos só colam, cortam, martelam e costuram. Quem trabalha diretamente com substâncias à base de solvente ganha um litro de leite por dia.
As mesinhas e cadeiras do ateliê de adereços são cobertas com um paninho xadrez branco-e-preto. Pendurada na alça da cadeira, uma bolsinha que cada aderecista recebe quando chega ao trabalho, com uma pistola de cola quente, tesoura e caneta.
Uma aderecista, como Janete Araújo, grávida de sete meses, ganha cerca de R$ 500 por mês. No barracão tem até zelador: Luis Carlos da Silva Gomes, 43, conhecido como "Mãe Dináh" e adepto do candomblé, mantém sempre acesa uma vela ao pé da estatueta de são Jorge.
Tudo o que é mostrado no Sambódromo é feito artesanalmente. Na Beija-Flor, 180 funcionários passam os dias cortando cartolina, colando penachos, costurando, retorcendo ferro. Descontração, só no almoço. De 15 em 15 dias, quando sai o pagamento, todos se reúnem num botequim perto do cais do porto. Aí também, a roda de samba e as conversas são liberadas.

PORTELA
A entrada do barracão da Portela é vigiada por câmeras 24h por dia. Tudo já está praticamente pronto. Três e meia da tarde. Uma pessoa grita: "Olha o lanche!!!". Homens e mulheres seguem em fila indiana para pegar um copo de refrigerante e um sanduíche de mortadela cada um.
Uma moça de short curto e barriguinha de fora come sentada na mesa enquanto cola uma fita dourada em chocalhos cor-de-rosa. Qual é o seu nome? "Marcelo Laudelino, mas pode me chamar de Silvia." Ao fundo, seus colegas de trabalho gritam: "É a mulher virtual! Mulher virtual!". Ela dá de ombros: "Faz parte". Fidelidade não é com Silvia: "Sou Salgueiro", diz, no ninho da Portela.
Numa salinha com ventilador no máximo, o aderecista Leonardo Ribeiro gruda lantejoulas numa fantasia com pistola de cola quente. Veste camisa da Gaviões da Fiel e conta que trabalhou em SP por "quatro anos maravilhosos". Há muita diferença entre o Carnaval carioca e o paulista? "Ah, muita. Os carros no Rio são mais bem-feitos, detalhados e bonitos. Mas eu adoro São Paulo."

MANGUEIRA
A contagem regressiva para o desfile já começou na Mangueira. Na porta do barracão, um cartaz lembra: "Atenção pessoal. Faltam 39 dias para o desfile. Vamos lá!". Ao pé da escada que leva às salas da diretoria, um despacho com cerveja e feijão fradinho.
Uma rádio toca "Amor e Sexo", de Rita Lee. Também na Mangueira o trabalho já está quase todo completo. No segundo andar, Carlinhos de Jesus, responsável pela comissão de frente da escola, analisa croquis e desenhos de fantasias com o figurinista Luis de Freitas e o diretor Moacyr Barreto. Ao avistar estranhos, todos viram os desenhos.
Perto da mesa de Carlinhos, um bolo com glacê é dividido entre as costureiras. Na Mangueira, ao contrário do que acontece na Beija-Flor, o almoço e o lanche ficam por conta dos próprios funcionários.


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