São Paulo, quinta-feira, 18 de março de 2010

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NINA HORTA

Brincadeira com ingredientes


Poupai-me do peito de frango, das folhas de alface desapontadas, da dieta das flores, do sopão de regime


PRECISAVA IR lá provar o menu vegetariano do Alex Atala.
Acontece que detesto comida vegetariana. Nada contra a saúde, o bem-estar, as delícias de um corpo sarado, a ideologia. Tudo contra o gosto da vagem, o cheiro da couve-de-bruxelas, o tomate azedo e um leve cheiro de mofo dos anos 60, quero meu torresminho, dai-me a costela de sempre, o bife grosso, poupai-me do peito de frango desnaturado e seco, das folhas de alface desapontadas, da dieta das flores, do sopão de regime.
Então, quase um ano depois da invenção do "meu reino vegetal", tomei coragem para ir ao D.O.M, mas fiz com que ele me prometesse no fim da aventura um torresmo vibrante, escandaloso, sem-vergonha.
Pedimos o menu-degustação de oito pratos. (Se é para sofrer, é tomar a dose inteira.) Sem frescuras, vamos ao que importa, o fundo do fundo da experiência. Mulheres e rapazes, vocês que pagam muito para ir emagrecer num spa onde precisam saltar o muro no fim de semana para comer um cachorro-quente na porta por questão de sobrevivência, meninas e rapazes, há um spa na Barão de Capanema, infinitamente mais barato e prazeroso do que o esparramo de se mudar para um hotel de meia pataca no interior. Simplesmente passem a comer no D.O.M. Entrem de cheio na mistura de sabores, na perfeita mistura de sabores. Comam bem.
Acreditem, o Atala deu mais um passo. Como se chama aquele esporte em que as pessoas se precipitam por cima dos muros, jogam-se no chão dos mais altos andares de prédio, passeiam pelos telhados, se achatam sobre o cimento, ressuscitam como gatos esfolados?
Acho aquilo lindo, me faz lembrar a intrepidez da infância, o enfrentamento de riscos, a adrenalina do perigo.
É como se o Atala tivesse pensado, já fiz disso e daquilo, agora vou experimentar outra e não me importo se me estatelar. Pra valer.
Com arroz, ovo, beterraba, pimenta, hortelã, priprioca, castanha-do-pará, tomatinho, melancia, laranja, lima-da-pérsia, palmito, cogumelos, leite de castanha-do-pará, algas, tucupi, jambu, grãos de milho peruano, sei lá mais o quê. Vou buscar o melhor gosto possível no que exista de mais simples e básico.
"Gentem", vocês especialistas e críticos que chamam esse cardápio carinhosamente de "graça", de "brincadeira", experimentem brincar vocês com os ingredientes, como brincam muitos chefs que irritam a todos, misturando alhos com bugalhos. Se é brincadeira, vai brincar bem assim no inferno.
A comida do Atala é um Lego, os ingredientes são muitos, peças de um enorme jogo de armar, de blocos empilhados como os vocábulos de uma linguagem maleável, e as variáveis, sem-fim. É ainda uma técnica de passo a passo. Adquirida, copiada, aprendida, experimentada por um artesão cheio de paciência. Experiências que se condensam e se transformam em maneiras próprias e em jeitos diferentes de fazer a mesma coisa. Atualmente, entre cozinheiros, os vocábulos mais simples se perderam.
Perderam a intuição do real e se debatem nas redes de suas próprias invenções abstrusas.
Não foi o que aconteceu com o Atala. É uma comida viva, específica de uma cultura, de-li-ci-o-sa. E para meu próprio susto, quando veio me perguntar como queria o torresmo, retruquei até ofendida, não, não quero, iria quebrar a linha de singeleza, beleza, gostosura.
E se o que o Atala fez com aqueles ingredientes é uma brincadeira, nós donos de restaurantes e bufês façamos o que ele faz com uma beterraba e duas bananas, baixemos o custo dos ingredientes para quase zero e o nosso lucro subirá aos céus. Tentem, crianças, tentem.

ninahorta@uol.com.br


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