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Mar revolto
Depois de dominar a cena brasileira, salmão corre risco de chegar drasticamente ao fim; fazendas aquáticas tornaram-se viveiros de parasitas que contaminam os peixes
JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA
Lá se vão uns 30 anos da primeira vez em que fui a Paris.
Cheguei numa véspera de Natal, direto para uma festa onde
causou-me impacto a presença,
e a fartura, de uma iguaria raríssima no Brasil: o salmão.
Pois por aqui, mal havia salmão
defumado, escocês e caro, e não
dos melhores, em geral muito
salgado. Salmão fresco, nem
pensar.
Os tempos mudaram, e os
brasileiros passaram a ter acesso ao delicioso peixe. Delicioso
e único: seu sabor, sua textura
que pode chegar ao cremoso,
sua cor hipnotizante, são especiais e distintos, mesmo cru, semicru (à "nouvelle cuisine").
Ele entrou na cena brasileira
e a dominou (em boa parte pela
disseminação do sushi, mas
também pelo fato de que, mesmo congelado, ele costuma ser
mais fresco do que a maioria
dos peixes vendidos "frescos",
muito tempo depois da pesca).
Até que finalmente... seu reinado corre o risco de chegar drasticamente ao fim.
A popularização de um peixe
tão bom e tão nobre só se tornou possível porque ele passou
a ser criado em fazendas aquáticas -inclusive aqui perto,
no Chile. A produção ficou mais
barata, o "frescor", mais garantido, mesmo comprado em supermercados, e a facilidade de
fornecimento, higiene, estocagem, muito maior para os restaurantes. O sabor não é o
mesmo do salmão selvagem,
claro; mas é menos aristocrático, mais acessível e, ainda
assim, saboroso.
Até que começou o tsunami.
As criações de salmão começaram a implodir: tornaram-se
viveiros de parasitas que contaminam os peixes. No caso do
salmão do Atlântico, produzido
no Chile, o piolho Caligus atacou com tal ferocidade que três
anos atrás os produtores tiveram de migrar para outra região, mais ao sul, deixando para
trás um rastro de abandono e
pobreza (mas não se livraram
da praga). No Canadá, quem vitima o salmão do Pacífico é o
Lepeophtheirus -são ambos
piolhos do mar que hoje atacam
também nos fiordes da Noruega e estão cada vez mais resistentes aos venenos.
Pior: além do seu próprio extermínio, as fazendas de salmão ameaçam também os salmões selvagens. Se a coisa continuar assim, o peixe pode entrar em extinção -como, por
outros caminhos (a pesca predatória), ficaram ameaçados o
codfish (do qual se produz o bacalhau), o esturjão (fonte do caviar) e o atum bluefin (cuja barriga, quando gorda, é o toro dos
sushis e sashimis).
No caso do salmão, o caminho é diferente, até paradoxal.
A ameaça não é a pesca predatória, mas justamente o fato de
ser cultivado. Como as fazendas aquáticas se localizam em
locais que são o habitat natural
da espécie, ao se tornarem usinas de parasitas, espalham a
doença também sobre o salmão
selvagem que circula por ali.
Normalmente, os filhotes de
salmão, que ao nascerem nos
rios rumam para o mar, não
têm contato com os peixes
adultos, que podem ter o parasita, mas resistem melhor a ele.
Nas fazendas, porém, ficam todos juntos, e os filhotes são atacados e mortos. E o mesmo
acontece com os filhotes selvagens, que nascem na região: é a
ameaça da espécie.
Não bastasse isso, para tentar conter as doenças, os salmões de cativeiro terminam
submetidos a tamanhas doses
de remédios e químicas que
muitos questionam se seriam
saudáveis para consumo.
Entidades preocupadas com
o tema sugerem mudanças na
criação -por exemplo, que ela
se dê em áreas estanques: um
sistema isolado protegeria os
peixes de doenças do mar e evitaria que eventuais doenças das
fazendas migrassem para os
peixes selvagens. Também pregam mudanças na alimentação,
com menos ração animal. Mas,
por enquanto, é só especulação.
O fato é que, assim como se
imagina formas de criar gado,
galinhas e porcos em condições
mais naturais, uma solução deveria ser achada também para o
salmão. Ou ele, como talvez
ocorra com outras iguarias, poderá tornar-se apenas uma
lembrança do passado.
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