São Paulo, quinta-feira, 18 de março de 2010

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A encruzilhada do gourmet

CRÍTICO DA FOLHA

Quanto mais rápido se aproxima o fim dos tempos -algo que a humanidade vem diligentemente produzindo-, mais os gourmets (e não gourmets, também) se defrontam com o problema da extinção de suas iguarias. Normalmente, provocadas por eles mesmos.
O problema é antigo, mas ganha feições cada vez mais dramáticas. Antes, os produtos desapareciam por meio de mecanismos muito simples -consumia-se desmesuradamente, e eles acabavam. Agora mesmo, esse fenômeno simples de exaustão de recursos está ocorrendo com produtos como o caviar (que depende da sobrevivência do ameaçado esturjão), as trufas (que dependem da existência dos cada vez menores bosques de carvalho), o toro (barriga do atum gordo bluefin, em extinção devido à pesca desordenada).
No caso do salmão, o caminho é diferente, até paradoxal. Ele está ameaçado justamente por estar sendo cultivado. No hemisfério Norte há campanhas que dizem: não coma salmão de criação. Aqui no nosso terreiro, a opção é mais incômoda -não há salmão selvagem à venda. "Estamos planejando importar diretamente, com nossa marca, salmão selvagem e hadoque da Noruega", diz Tadeu Masano, do restaurante de peixes Amadeus. "Mas pelo que vimos, o preço será pesado." Enquanto ele não chega, o que fazer? Param todos de comer o peixe?
O gourmet mais esnobe pode se dar o luxo de só comer salmão ("wild salmon, of course") em seus giros por Londres ou Nova York. Já o politicamente correto se recusa a atacar o equilíbrio do planeta ou a compactuar com os maus-tratos das fazendas de salmão. Para serem coerentes, uns e outros teriam de parar de comer (ou servir) não somente o salmão como também os frangos (criados em caixotes), o sushi de toro, a carne de bois trucidados e criados em pastagens que ameaçam o ecossistema, o porco feito de anabolizantes e antibióticos e até mesmo o queijinho da soja que está dizimando o equilíbrio natural do Centro-Oeste e da Amazônia.
Tal privação pode trazer um conforto individual e amenizar a culpa do gourmet. Que, se for rico o bastante, poderá comer somente produtos colhidos ou criados em sua própria fazenda. Mas cada vez mais, a solução (se existe), nem um pouco fácil, não é a imolação do paladar individual, mas medidas políticas em relação ao gosto e à alimentação, que possam mudar radicalmente o sistema alimentar de bilhões de pessoas.
Aliás, neste fim de semana, tem encontro do Slow Food, em Brasília, com a presença de seu fundador: um movimento que olha a gastronomia com viés intensamente político. É chato misturar o prazer da mesa com política, pouco digestivo. Mas neste estado do mundo, se houver saída, é por aí.
(JOSIMAR MELO)

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