São Paulo, Quinta-feira, 18 de Março de 1999
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OSCAR HONORÁRIO
Delação de Elia Kazan foi ato trágico e maduro

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Segundo a versão clássica, depois de muito ser pressionado pela Comissão de Atividades Anti-Americanas do Senado, em 1952 Elia Kazan -que receberá no domingo um Oscar especial por sua carreira- cedeu e delatou seus ex-amigos do Partido Comunista, como maneira de salvar sua carreira.
Em tese defendida na Unicamp, a historiadora Sheila Schvarzman levanta a hipótese de essa versão não ser muito mais que um conto da carochinha.
Com efeito, Kazan era um ex-comunista no tempo da caça às bruxas e, como tal, foi pressionado pela comissão. De fato, ele hesitou antes de fazê-lo e é certo que, se não o fizesse, sua carreira em Hollywood iria por água abaixo.
O que é em geral esquecido é que Elia Kazan delatou seus ex-amigos com estardalhaço. Não só entregou os nomes à comissão, como publicou um artigo de página inteira no "New York Times" defendendo sua atitude.
Kazan, membro do partido nos anos 30, desligou-se dele em grande estilo quando o Comitê Central enviou um comissário para supervisionar suas atividades de diretor teatral. A ruptura foi violenta, e data daí sua ojeriza ao Partido Comunista (não propriamente ao comunismo; Kazan era um liberal, no sentido americano do termo).
Portanto, a delação de Kazan -ao contrário da de outros cineastas, como Edward Dmytryk- se deu menos para que salvasse a pele, do que por julgar a idéia de que o partido era uma ameaça mundial.
Talvez por isso ele tenha sido o único cineasta, de todos os envolvidos com a delação na era macarthista, cuja obra floresceu justamente após seu depoimento, quando fez, de enfiada, "Sindicato de Ladrões" (1954), "A Leste do Eden" (1955), "Baby Doll" (1956), "Um Rosto na Multidão" (1957), "Rio Violento" (1960), "Clamor do Sexo" (1962), "América, América" (1963) -uma série para ninguém botar defeito (a outra exceção é Robert Rossen, que levou mais de dez anos para se recuperar do acontecido).
Mais interessante no trabalho da historiadora, porém, é a constatação de que "Pânico nas Ruas" (de 1949, portanto três anos antes do depoimento) é um filme em que a delação aparece como atitude necessária e saneadora.
Trata-se ali de denunciar o responsável por uma epidemia que se alastra nas proximidades de um porto.
Em 1952, ano de seu depoimento, Kazan lança "Viva Zapata!", em que introduz uma espécie de comissário do povo enviado para direcionar as atividades dos revolucionários.
Como a Revolução Mexicana precede a Revolução Russa e a instituição do comissário do povo, Schvarzman observa que essa figura, detestável no filme, é uma criação do diretor (e do roteirista Budd Schulberg, também ex-comunista e também delator) e uma observação direta sobre os métodos do Partido Comunista.
Todos esses indícios fazem crer que a delação foi um ato consciente de Elia Kazan, muito mais do que produto de pressões da época. Sua hesitação, vistas as coisas assim, diria respeito muito mais à passagem da teoria à prática, do que às dúvidas íntimas que nutria sobre a delação como um ato saneador.
Para completar, não é certo que o gesto tenha beneficiado o diretor. Logo em seguida a ele, foi forçado a dirigir "Um Homem na Corda-Bamba", filme de segunda linha e caricatamente anticomunista, quando até 1952 era um cineasta com enorme prestígio junto à Fox.
O mesmo estúdio não se dignou a produzir "Sindicato de Ladrões", realização independente que, de fato, relançou sua carreira.

Entusiasta de Roosevelt
Outro elemento torna ainda mais complexa a atitude de Kazan: ele era um entusiasta do presidente Franklin Roosevelt e de sua política do New Deal, que foram, na verdade, alvos prioritários da caça às bruxas (vingança dos republicanos contra os partidários de Roosevelt e da intervenção do Estado nos negócios). A defesa do New Deal será, no mais, um aspecto central de "Rio Violento".
Independente das considerações de ordem moral que pode suscitar a delação, parece bem mais consistente a idéia de que o gesto de Kazan tenha sido consciente e refletido.
Foi um gesto trágico, que dividiu sua vida em dois, marcando-o para sempre com o estigma de dedo-duro. Mas foi também uma atitude madura, pela qual tomou posição em relação à história americana e ao stalinismo, e que o elevam a personagem dessa história de que seus filmes dão conta, no mais, como poucas outras obras neste século.


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