São Paulo, segunda-feira, 18 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES PLÁSTICAS

Documentário da BBC e livro fazem retrato do pintor irlandês a partir de seus relacionamentos pessoais

Biografias investigam a violência em Bacon

PHILIP HOARE
DO "INDEPENDENT"

Francis Bacon era tão reconhecível quanto seus quadros. Seus traços, petulantes, mas impassíveis, seu senso de moda aristocrático e vulgar, sua figura juvenil, foram descritos vividamente em 1960, no diário de Cecil Beaton, como "incrivelmente esguios para uma pessoa de sua idade e ocupação. Não havia nada de supérfluo no corpo nele".
Como observa o crítico de arte Martin Harrison, Bacon era parte aristocrata eduardiano, parte roqueiro arruaceiro. A aparência de Bacon servia como contraponto à violência controlada de suas obras; enquanto suas pinturas refletiam um século apocalíptico, seu rosto pouco revelava. Apenas agora, 13 anos depois de sua morte em um hospital de Madri, a vida privada do artista começa a se tornar pública, com dois estudos finalmente permitindo que encaremos o verdadeiro Bacon.
O primeiro deles, um livro chamado "Francis Bacon in Camera" (Francis Bacon em câmera), de Martin Harrison, se concentra nas fontes de inspiração do trabalho do pintor -das fotografias feitas no século 19 por Eadweard Muybridge a "O Encouraçado Potemkin" (1925), filme russo de Serguei Eisenstein- e ilustra de que maneira seu uso desse tipo de material sempre foi espantosamente moderno.
Mas o segundo estudo, um novo documentário produzido para a BBC, chamado "Francis Bacon's Arena" [a arena de Francis Bacon], trabalho do diretor Adam Low e do editor Sean Mackenzie, oferece alcance biográfico ainda mais extenso. O que o filme revela são novos e notáveis indícios sobre o grau em que os tempestuosos relacionamentos em que Bacon se envolveu entre os anos 30 e os anos 80 influenciaram sua arte.
Bacon era famoso por rejeitar qualquer esforço de interpretação de seu trabalho. "Sou um pintor simples e direto", nós o vemos dizer para a câmera. Mas a declaração é enganosa e oculta a verdade sobre a complexa vida do pintor.
Francis Bacon nasceu em 1909, em Dublin (Irlanda), filho de uma família de classe média anglo-irlandesa e protestante. Seu pai era soldado e criador de cavalos de corrida, um cavalheiro eduardiano que tinha quase tão pouco tempo para os filhos quanto sua mulher, uma figura mais moderna, com chapéus ousados, mas igualmente indiferente aos primeiros esforços artísticos do filho.
Os antecedentes familiares de Bacon -as constantes viagens entre a Irlanda e a Inglaterra na infância, a falta de educação formal- eram repressivos. E a violência sectária também afetou sua vida, já que a luta pela independência irlandesa "me tornou consciente do perigo quando ainda muito jovem", diria Bacon mais tarde. Era um mundo do qual Francis Bacon precisava escapar, a fim de inventar Francis Bacon. O momento surgiu quando seu pai apanhou o filho adolescente experimentando a roupa de baixo da mãe e, como resultado, o expulsou de casa.
Como revela o filme, Bacon foi enviado, com um salário semanal de três libras, para viver com uma família em Chantilly, pequena cidade nas cercanias de Paris. Lá, a mãe da família o apresentou às maravilhas da arte moderna. Bacon ficou fascinado pelo trabalho dos cubistas e, acima de tudo, por Picasso. Em breve, começou a pintar em estilo cubista.
Mas também se deixou encantar pelos surrealistas, especialmente pelos filmes de Buñuel, como "Um Cão Andaluz" (1929) e "A Idade do Ouro", com suas cenas de olhos retalhados ou uma bela mulher de figura andrógina espetando uma mão amputada na rua com uma bengala. Bacon ficou fascinado pela "precisão notável das imagens" e viu nelas um augúrio do que viria a tentar em sua arte, "... a agudeza da imagem visual que é preciso representar".
De volta a Londres após uma temporada em Berlim, de onde saiu "completamente corrompido", em suas próprias palavras, estabeleceu um estúdio inicialmente como designer de móveis e tapetes influenciados pela Bauhaus. Sob a orientação de seu amante na época, o artista Roy De Maistre, Bacon começou a se desenvolver como pintor.
À medida que os acontecimentos políticos dos anos 30 se agravavam, um senso de escuridão começou a permear seu trabalho. Em uma cena de crucifixão publicada por Herbert Read ao lado de um trabalho de Picasso na revista "Art Now", em 1933, Bacon exibe seu estilo incipiente: imagens nebulosas, vagamente cubistas, encetando um martírio religioso, mas com forte ambivalência.
À medida que Bacon e De Maistre começaram a se distanciar, o jovem pintor passou a se dedicar a pequenos crimes e à prostituição. Estava trabalhando em um estabelecimento para cavalheiros conhecido como The Bath Club [o clube do banho] quando encontrou uma nova figura paterna.
Eric Hall era diretor da loja de departamentos Peter Jones, vereador pelo Partido Conservador, casado e pai de dois filhos. Mas, como revela o filme, o relacionamento deles perduraria até o final dos anos 50.
Em 1941, Bacon e Hall se mudaram para o lugar em que anteriormente funcionava o estúdio do pintor pré-rafaelita John Everett Millais. Foi nesse cavernoso espaço vitoriano que os mais vitais quadros britânicos da metade do século 20 -"Three Studies for Figures" [três estudos para figuras] e "Base of a Crucifixion" [base de uma crucificação], de Bacon- foram criados. Este último foi exposto em abril de 1945, apenas um mês antes do final da guerra na Europa. Foi um momento luminoso para a arte britânica, com a história recente e a visão pessoal de Bacon se fundindo de uma maneira ainda hoje espantosa.
O relacionamento com Hall terminaria, aparentemente, de maneira infeliz. Bacon se recusava a falar sobre o ex-amante e a única referência a ele é encontrada no quadro "Figure in a Landscape" [figura em uma paisagem] de 1945, em que Hall é representado sem cabeça, identificável apenas pelo terno que usa.
Por volta dos anos 50, Bacon estava vivendo, em Londres, a vida que lhe valeu notoriedade. Levantava-se às 6h, pintava até o meio-dia -a ressaca propiciava "uma espécie de liberdade", alegava- e depois fazia a ronda dos bares do Soho. O brinde embriagado que ele propunha se tornaria famoso: "Champagne for my real friends, real pain for my sham friends" (Champanhe para os meus amigos reais, dor real para os meus falsos amigos). Mas a vida ainda lhe reservaria muita dor.
O relacionamento entre Bacon e o audaz e belo Peter Lacey, um ex-piloto de caça, foi o mais destrutivo de sua vida. Inicialmente, as coisas iam bem, mas Lacey em breve revelaria seu lado sádico. Como revelam o filme de Low e o livro de Harrison, o comportamento extremo de Lacey criaria problemas para ambos.
Era como se a violência representada na arte de Bacon estivesse sendo reproduzida em sua vida pessoal. Ou o contrário? Os quadros de Bacon retratam sua autodestruição em tom abertamente sádico, mas disfarçavam os modelos de maneira irreconhecível a todos, exceto os mais íntimos. Ele e Lacey viveram em um vilarejo em Berkshire, bebendo o dia inteiro no bar ao lado de sua casa e brigando a noite toda.
Bacon era "fisicamente obcecado" por Lacey, que se deliciava em humilhar o amante. Em uma tentativa de escapar a essa perspectiva aterrorizante, Bacon se retirou para o Imperial Hotel, na vizinha Henley-on-Thames. Lá, estabeleceu outros relacionamentos, anônimos e passageiros, comemorados em quadros como a série "Man in Blue" (1953-4).
Essa inconstância se misturava à natureza nômade de sua vida e reforçava o pessimismo natural do pintor: "Nascemos e morremos, e no intervalo nossos impulsos dão sentido a essa existência sem propósito". O que ele era incapaz de controlar em sua dramática vida privada, tentava capturar nos limites de suas telas.
Em 1961, aos 52 anos, Bacon voltou para Londres, onde viveria pelos 30 anos seguintes. O filme de Low nos conduz pela geografia desse espaço e mostra Bacon preparando chá para seus convidados. Apesar de toda a sua reticência quanto à vida privada, Bacon foi um dos artistas mais filmados de sua era, e Low recolheu fascinantes entrevistas sobre o pintor.
Os relacionamentos de Bacon completaram um círculo em 1974, quando conheceu John Edwards, para quem se tornaria uma figura paterna. Edwards era disléxico e analfabeto mas, como relembra um amigo, cruelmente, "aprendeu a escrever o nome rapidinho, assim que ganhou um talão de cheques". No filme, ele é exibido como uma espécie de londrino afável do East End, sentado no braço do sofá de Bacon e parecendo um pouco com uma versão cockney de John Travolta.
Edwards herdaria o patrimônio de Bacon, avaliado em 11,37 milhões de libras (R$ 55,91 milhões). Mas quando o pintor conheceu um belo banqueiro espanhol, no final dos anos 80, ele e Edwards já vinham há muito mantendo vidas sexuais separadas. Bacon conduziu seu novo caso com a paixão característica, pintando retratos que o mostravam ao lado de José.
Que seu último amor conduzisse Bacon a Madri, terra de Velázquez, pintor que ele venerava, foi um fim apropriado, e lá ele expirou, de uma crise respiratória causada pela asma de que sofrera a vida inteira, em 28 de abril de 1992.


Tradução Paulo Migliacci
Francis Bacon in Camera: Photography, Film and the Practice of Painting
Autor: Martin Harrison Editora: Thames & Hudson Quanto: 32 libras (R$ 157,36)
Onde encomendar: www.amazon.co.uk


Texto Anterior: Sapo Cururu traz filmes e shows
Próximo Texto: Cinema: Cannes deve abrigar "grandes nomes"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.