|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTES PLÁSTICAS
Documentário da BBC e livro fazem retrato do pintor irlandês a partir de seus relacionamentos pessoais
Biografias investigam a violência em Bacon
PHILIP HOARE
DO "INDEPENDENT"
Francis Bacon era tão reconhecível quanto seus quadros. Seus
traços, petulantes, mas impassíveis, seu senso de moda aristocrático e vulgar, sua figura juvenil, foram descritos vividamente em
1960, no diário de Cecil Beaton,
como "incrivelmente esguios para uma pessoa de sua idade e ocupação. Não havia nada de supérfluo no corpo nele".
Como observa o crítico de arte
Martin Harrison, Bacon era parte
aristocrata eduardiano, parte roqueiro arruaceiro. A aparência de
Bacon servia como contraponto à
violência controlada de suas
obras; enquanto suas pinturas refletiam um século apocalíptico,
seu rosto pouco revelava. Apenas
agora, 13 anos depois de sua morte em um hospital de Madri, a vida privada do artista começa a se
tornar pública, com dois estudos
finalmente permitindo que encaremos o verdadeiro Bacon.
O primeiro deles, um livro chamado "Francis Bacon in Camera"
(Francis Bacon em câmera), de
Martin Harrison, se concentra
nas fontes de inspiração do trabalho do pintor -das fotografias
feitas no século 19 por Eadweard
Muybridge a "O Encouraçado Potemkin" (1925), filme russo de
Serguei Eisenstein- e ilustra de
que maneira seu uso desse tipo de
material sempre foi espantosamente moderno.
Mas o segundo estudo, um novo documentário produzido para
a BBC, chamado "Francis Bacon's
Arena" [a arena de Francis Bacon], trabalho do diretor Adam
Low e do editor Sean Mackenzie,
oferece alcance biográfico ainda
mais extenso. O que o filme revela
são novos e notáveis indícios sobre o grau em que os tempestuosos relacionamentos em que Bacon se envolveu entre os anos 30 e
os anos 80 influenciaram sua arte.
Bacon era famoso por rejeitar
qualquer esforço de interpretação
de seu trabalho. "Sou um pintor
simples e direto", nós o vemos dizer para a câmera. Mas a declaração é enganosa e oculta a verdade
sobre a complexa vida do pintor.
Francis Bacon nasceu em 1909,
em Dublin (Irlanda), filho de uma
família de classe média anglo-irlandesa e protestante. Seu pai era
soldado e criador de cavalos de
corrida, um cavalheiro eduardiano que tinha quase tão pouco
tempo para os filhos quanto sua
mulher, uma figura mais moderna, com chapéus ousados, mas
igualmente indiferente aos primeiros esforços artísticos do filho.
Os antecedentes familiares de
Bacon -as constantes viagens
entre a Irlanda e a Inglaterra na
infância, a falta de educação formal- eram repressivos. E a violência sectária também afetou sua
vida, já que a luta pela independência irlandesa "me tornou
consciente do perigo quando ainda muito jovem", diria Bacon
mais tarde. Era um mundo do
qual Francis Bacon precisava escapar, a fim de inventar Francis
Bacon. O momento surgiu quando seu pai apanhou o filho adolescente experimentando a roupa de
baixo da mãe e, como resultado, o
expulsou de casa.
Como revela o filme, Bacon foi
enviado, com um salário semanal
de três libras, para viver com uma
família em Chantilly, pequena cidade nas cercanias de Paris. Lá, a
mãe da família o apresentou às
maravilhas da arte moderna. Bacon ficou fascinado pelo trabalho
dos cubistas e, acima de tudo, por
Picasso. Em breve, começou a
pintar em estilo cubista.
Mas também se deixou encantar pelos surrealistas, especialmente pelos filmes de Buñuel, como "Um Cão Andaluz" (1929) e
"A Idade do Ouro", com suas cenas de olhos retalhados ou uma
bela mulher de figura andrógina
espetando uma mão amputada
na rua com uma bengala. Bacon
ficou fascinado pela "precisão notável das imagens" e viu nelas um
augúrio do que viria a tentar em
sua arte, "... a agudeza da imagem
visual que é preciso representar".
De volta a Londres após uma
temporada em Berlim, de onde
saiu "completamente corrompido", em suas próprias palavras,
estabeleceu um estúdio inicialmente como designer de móveis e
tapetes influenciados pela Bauhaus. Sob a orientação de seu
amante na época, o artista Roy De
Maistre, Bacon começou a se desenvolver como pintor.
À medida que os acontecimentos políticos dos anos 30 se agravavam, um senso de escuridão começou a permear seu trabalho.
Em uma cena de crucifixão publicada por Herbert Read ao lado de
um trabalho de Picasso na revista
"Art Now", em 1933, Bacon exibe
seu estilo incipiente: imagens nebulosas, vagamente cubistas, encetando um martírio religioso,
mas com forte ambivalência.
À medida que Bacon e De Maistre começaram a se distanciar, o
jovem pintor passou a se dedicar a
pequenos crimes e à prostituição.
Estava trabalhando em um estabelecimento para cavalheiros conhecido como The Bath Club [o
clube do banho] quando encontrou uma nova figura paterna.
Eric Hall era diretor da loja de
departamentos Peter Jones, vereador pelo Partido Conservador,
casado e pai de dois filhos. Mas,
como revela o filme, o relacionamento deles perduraria até o final
dos anos 50.
Em 1941, Bacon e Hall se mudaram para o lugar em que anteriormente funcionava o estúdio do
pintor pré-rafaelita John Everett
Millais. Foi nesse cavernoso espaço vitoriano que os mais vitais
quadros britânicos da metade do
século 20 -"Three Studies for Figures" [três estudos para figuras]
e "Base of a Crucifixion" [base de
uma crucificação], de Bacon-
foram criados. Este último foi exposto em abril de 1945, apenas um
mês antes do final da guerra na
Europa. Foi um momento luminoso para a arte britânica, com a
história recente e a visão pessoal
de Bacon se fundindo de uma maneira ainda hoje espantosa.
O relacionamento com Hall terminaria, aparentemente, de maneira infeliz. Bacon se recusava a
falar sobre o ex-amante e a única
referência a ele é encontrada no
quadro "Figure in a Landscape"
[figura em uma paisagem] de
1945, em que Hall é representado
sem cabeça, identificável apenas
pelo terno que usa.
Por volta dos anos 50, Bacon estava vivendo, em Londres, a vida
que lhe valeu notoriedade. Levantava-se às 6h, pintava até o meio-dia -a ressaca propiciava "uma
espécie de liberdade", alegava- e
depois fazia a ronda dos bares do
Soho. O brinde embriagado que
ele propunha se tornaria famoso:
"Champagne for my real friends,
real pain for my sham friends"
(Champanhe para os meus amigos reais, dor real para os meus
falsos amigos). Mas a vida ainda
lhe reservaria muita dor.
O relacionamento entre Bacon e
o audaz e belo Peter Lacey, um ex-piloto de caça, foi o mais destrutivo de sua vida. Inicialmente, as
coisas iam bem, mas Lacey em
breve revelaria seu lado sádico.
Como revelam o filme de Low e o
livro de Harrison, o comportamento extremo de Lacey criaria
problemas para ambos.
Era como se a violência representada na arte de Bacon estivesse
sendo reproduzida em sua vida
pessoal. Ou o contrário? Os quadros de Bacon retratam sua autodestruição em tom abertamente
sádico, mas disfarçavam os modelos de maneira irreconhecível a
todos, exceto os mais íntimos. Ele
e Lacey viveram em um vilarejo
em Berkshire, bebendo o dia inteiro no bar ao lado de sua casa e
brigando a noite toda.
Bacon era "fisicamente obcecado" por Lacey, que se deliciava em
humilhar o amante. Em uma tentativa de escapar a essa perspectiva aterrorizante, Bacon se retirou
para o Imperial Hotel, na vizinha
Henley-on-Thames. Lá, estabeleceu outros relacionamentos, anônimos e passageiros, comemorados em quadros como a série
"Man in Blue" (1953-4).
Essa inconstância se misturava
à natureza nômade de sua vida e
reforçava o pessimismo natural
do pintor: "Nascemos e morremos, e no intervalo nossos impulsos dão sentido a essa existência
sem propósito". O que ele era incapaz de controlar em sua dramática vida privada, tentava capturar
nos limites de suas telas.
Em 1961, aos 52 anos, Bacon
voltou para Londres, onde viveria
pelos 30 anos seguintes. O filme
de Low nos conduz pela geografia
desse espaço e mostra Bacon preparando chá para seus convidados. Apesar de toda a sua reticência quanto à vida privada, Bacon
foi um dos artistas mais filmados
de sua era, e Low recolheu fascinantes entrevistas sobre o pintor.
Os relacionamentos de Bacon
completaram um círculo em 1974,
quando conheceu John Edwards,
para quem se tornaria uma figura
paterna. Edwards era disléxico e
analfabeto mas, como relembra
um amigo, cruelmente, "aprendeu a escrever o nome rapidinho,
assim que ganhou um talão de
cheques". No filme, ele é exibido
como uma espécie de londrino
afável do East End, sentado no
braço do sofá de Bacon e parecendo um pouco com uma versão
cockney de John Travolta.
Edwards herdaria o patrimônio
de Bacon, avaliado em 11,37 milhões de libras (R$ 55,91 milhões).
Mas quando o pintor conheceu
um belo banqueiro espanhol, no
final dos anos 80, ele e Edwards já
vinham há muito mantendo vidas
sexuais separadas. Bacon conduziu seu novo caso com a paixão
característica, pintando retratos
que o mostravam ao lado de José.
Que seu último amor conduzisse Bacon a Madri, terra de Velázquez, pintor que ele venerava, foi
um fim apropriado, e lá ele expirou, de uma crise respiratória
causada pela asma de que sofrera
a vida inteira, em 28 de abril de
1992.
Tradução Paulo Migliacci
Francis Bacon in Camera: Photography, Film and the Practice of Painting
Autor: Martin Harrison Editora: Thames & Hudson Quanto: 32 libras (R$ 157,36)
Onde encomendar: www.amazon.co.uk
Texto Anterior: Sapo Cururu traz filmes e shows Próximo Texto: Cinema: Cannes deve abrigar "grandes nomes" Índice
|