São Paulo, terça-feira, 18 de maio de 2004

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FERNANDO BONASSI

Termo de compromisso com a verdade

Dá-me aqui este livro para que fique clara a minha intenção de provocar confusão: eu juro dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade... Em primeiro lugar, o que é a verdade? A verdade, na verdade, é, lamentamos informar, ambígüa. Uma verdade revelada pode ser uma mentira deslavada, desde que em ordem com o processo e bem apresentada!
A verdade, conforme apregoa a física, é uma sujeita relativa à velocidade do observador. Há aqueles que têm mais pressa de chegar aos fatos consumados; há outros que preferem analisar os acontecimentos com cuidado e perícias, até porque algumas pistas escarafunchadas em hora errada podem muito bem convir à prescrição das certas penas de uns e outros, tecnicamente.
Tecnicamente, portanto, a verdade está em trânsito. Paga pedágio, pede passagem, dá licenças e sinais. Transita entre capitais e entre culturas; entre campanhas e legislaturas...
A verdade está no código: há os que o respeitam permanecendo calados pelo receio de serem culpados num desses atos falhos incensados por inquiridores deputados.
Manterei-me no direito torto de ficar quietinho.
Não será um inquérito parlamentar suspeito que vai se meter no fundo dos meus relacionamentos, por mais violento ou sujo que me tenha sido o passado arremessado nos ventiladores das repartições de verbas públicas, como um jogo de azar.
Tenho má reputação a zelar!
E nada mais legítimo do que duvidar da qualidade desses testemunhos que se movem contra mim! Todos são imperfeitos até prova contrária do Supremo! Ninguém aqui é o messias dos casos enrolados, ainda que possamos impetrar mandatos e fazer estardalhaço com recursos desperdiçados.
O que há de verdade nesses documentos empedrados nas gavetas dos magistrados?
Deus pode ser grande, mostrar o caminho e fazer seus julgamentos, mas são as decisões locais que agem em meu benefício. Sou um líder em minha comunidade. Todos os juízes me respeitam!
Bem preservaria-me no anonimato das mamatas se esses promotores sem graça tivessem a fineza de não pegarem nos pés dos meus sonhos de grandeza.
Não posso mostrar a cara. Sou apenas um contra a massa ignara. Verdade boa se advoga é com pernas longas e saias justas, declarando nossos desejos e subornos mais íntimos!
A verdade, é bom lembrar, depende da amizade. Rima com vontade, mas não rima com sabedoria ou esperteza. As cartas estão na mesa: aos amigos, a caridade prática, aos inimigos, a ferroada da lei democrática!
O problema é que a verdade, por menos maldade, pode estar entalada num novelo de explicações mal dadas que uma vez puxadas haverão de gerar reações inesperadas!
Quem disse que uma revolução começa numa loucura tinha razão! Isto não é uma palhaçada, ainda que a verdade nos venha a ser jogada como uma torta engraçada, expondo-nos ridículos por trás das máscaras despregadas.
Podemos estar sendo vítimas das circunstâncias que fazem os ladrões, mas isso não quer dizer que carregamos todas as nossas aquisições importantes aos paraísos fiscais distantes. Minhas contas na Suíça pago eu, ainda que com o dinheiro dos outros ou levando mulher alheia. Quem não tem seus pecados no pensamento?
A verdade é uma idéia, é um momento!
Quem estuda essa história terrível feita por homens pisoteando nos homens como eu também sabe que a verdade depende da insistência, conforme ensinaram os nazistas. Afinal, uma boa mentira repetida à exaustão há de convencer a multidão dos meus quereres!
Não sei de tudo! Eu fiz nada! Pobrezinho!
A verdade pode vir a depender da força empregada, dos regulamentos que "pegam" na porrada e das armas importadas por baixo dos panos que apontam em desafio para ricos braços erguidos que não pagam impostos. A verdade é uma água gelada que se esvai entre dedos trêmulos de medos. Todos terão a morte que merecem, esse é o destino inescapável. Quanto a mim, espero que demore, que eu aproveite, que melhore.
A verdade é um fenômeno incomensurável e incompreensível; podendo, de pouca transparência, ser considerada mentira, quanto maiores forem as perdas daqueles que se sentirem prejudicados. A justiça cega está aí, à disposição dos mais espertos!
A verdade pode estar num ponto específico, entranhada num orifício difícil. A verdade é um tumor, um incômodo, um cisco! É um risco no disco e depende do barulho que nos causa.
A causa da verdade é egoísta e mesquinha, pois exige existir sozinha! Eu prefiro a ousadia da criação. A mentira como expressão!
A verdade é um alimento que pode dar congestão...
Se ficarmos imóveis, quem sabe não seremos vistos enrascados, podendo guardar nos cofres camuflados e escusos as nossas vilezas vistosas?!
O melhor mesmo é o silêncio; só assim as nossas consciências continuarão fazendo eco de coisas idênticas, num eterno retorno da mesma porcaria.


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