São Paulo, sábado, 18 de julho de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Rilke e o silêncio de Orfeu


"O Testamento" presta contas da agonia do autor de servir a dois patrões inconciliáveis: o mundo e a arte

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

UM SEMESTRE hospedado no castelo de Bergam Irchel, na Suíça, entre novembro de 1920 e maio de 1921, e Rainer Maria Rilke (1875-1926) acrescentou capítulo novo à história da luta vã com as palavras.
Incapaz de concluir o ciclo de elegias iniciado anos antes, em outra temporada de encastelamento (esta em Duíno, junto do Adriático), legou-nos um manuscrito, escrupulosamente passado a limpo, em que prestava contas da agonia de um escritor obrigado a servir a dois patrões inconciliáveis: o mundo, sob a forma exigente das relações pessoais (no limite, o amor), e a arte, reclamando devoção absoluta. A literatura como religião laica -que o identifica com outros grandes nomes da poesia alemã na virada do século, Stefan George e Hugo von Hofmansthal, modernos, mas nada vanguardistas- e uma obsessão pela obra diagnosticada por Maurice Blanchot como uma morte para a vida prática fazem com que este breve testamento, publicado postumamente, na década de 1970, pelo editor alemão de suas obras completas, represente curioso paralelo à correspondência entre Kafka e suas mulheres.
Em ambos, a renúncia aos arranjos habituais de acomodação dos afetos (formar uma família, por exemplo) é apresentada como a antessala obrigatória da realização literária, construída com doses idênticas de sacrifício e autossuficência. Na história da recepção da obra de Rilke (que, em um terceiro castelo, o de Muzot, no ano notável de 1922, sempre patrocinado por amigos aristocratas, finalmente concluiu as "Elegias de Duíno" e escreveu de um jorro seus "Sonetos a Orfeu"), a recusa aristocrática do mundo contemporâneo muitas vezes levou a equívocos, o mais comum a confusão de sua poesia com beletrismo, erro da "geração de 45" brasileira. Desde o estudo de Arnaldo Saraiva "Para a História da Leitura de Rilke em Portugal e no Brasil" (Porto, 1984), a percepção crescente de que nesta poesia a vocação metafísica convive com o visualismo substantivo de uma poesia-coisa matizou bastante o quadro (veja-se Augusto de Campos em "Rilke: Poesia-Coisa", 1996, e a antologia organizada por José Paulo Paes, 1993).
A edição fac-similar e bilíngue desse testamento mostra as exigências desse mundo próprio em que, longe de nefelibata, Rilke caminhava, conferindo perturbadora densidade à brisa: "Respirar, invisível dom -poesia!/ Permutação entre o espaço infinito/ e o ser. Pura harmonia/ onde em ritmos me habito... Quanta dessas estâncias dos es- paços/ Estavam já em mim. E quanta brisa/ como um filho em meus braços.// Me reconheces, ar, nas tuas velhas lavras?/ Outrora casca lisa,/ céu e folhagem das minhas palavras".


O TESTAMENTO

Autor: Rainer Maria Rilke
Tradução: Tércio Redondo
Editora: Globo
Quanto: R$ 26 (152 págs.)
Avaliação: bom



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