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RODAPÉ LITERÁRIO
Rilke e o silêncio de Orfeu
"O Testamento" presta contas da agonia do autor de servir a dois patrões inconciliáveis: o mundo e a arte
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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
UM SEMESTRE hospedado no
castelo de Bergam Irchel, na
Suíça, entre novembro de
1920 e maio de 1921, e Rainer Maria
Rilke (1875-1926) acrescentou capítulo novo à história da luta vã com
as palavras.
Incapaz de concluir o ciclo de elegias iniciado anos antes, em outra
temporada de encastelamento (esta
em Duíno, junto do Adriático), legou-nos um manuscrito, escrupulosamente passado a limpo, em que
prestava contas da agonia de um escritor obrigado a servir a dois patrões inconciliáveis: o mundo, sob a
forma exigente das relações pessoais (no limite, o amor), e a arte, reclamando devoção absoluta.
A literatura como religião laica
-que o identifica com outros grandes nomes da poesia alemã na virada
do século, Stefan George e Hugo von
Hofmansthal, modernos, mas nada
vanguardistas- e uma obsessão pela obra diagnosticada por Maurice
Blanchot como uma morte para a vida prática fazem com que este breve
testamento, publicado postumamente, na década de 1970, pelo editor alemão de suas obras completas,
represente curioso paralelo à correspondência entre Kafka e suas
mulheres.
Em ambos, a renúncia aos arranjos habituais de acomodação dos
afetos (formar uma família, por
exemplo) é apresentada como a antessala obrigatória da realização literária, construída com doses idênticas de sacrifício e autossuficência.
Na história da recepção da obra de
Rilke (que, em um terceiro castelo, o
de Muzot, no ano notável de 1922,
sempre patrocinado por amigos
aristocratas, finalmente concluiu as
"Elegias de Duíno" e escreveu de um
jorro seus "Sonetos a Orfeu"), a recusa aristocrática do mundo contemporâneo muitas vezes levou a
equívocos, o mais comum a confusão de sua poesia com beletrismo,
erro da "geração de 45" brasileira.
Desde o estudo de Arnaldo Saraiva "Para a História da Leitura de Rilke em Portugal e no Brasil" (Porto,
1984), a percepção crescente de que
nesta poesia a vocação metafísica
convive com o visualismo substantivo de uma poesia-coisa matizou bastante o quadro (veja-se Augusto de
Campos em "Rilke: Poesia-Coisa",
1996, e a antologia organizada por
José Paulo Paes, 1993).
A edição fac-similar e bilíngue
desse testamento mostra as exigências desse mundo próprio em que,
longe de nefelibata, Rilke caminhava, conferindo perturbadora densidade à brisa: "Respirar, invisível
dom -poesia!/ Permutação entre o
espaço infinito/ e o ser. Pura harmonia/ onde em ritmos me habito...
Quanta dessas estâncias dos es-
paços/ Estavam já em mim. E quanta brisa/ como um filho em meus
braços.// Me reconheces, ar, nas
tuas velhas lavras?/ Outrora casca
lisa,/ céu e folhagem das minhas
palavras".
O TESTAMENTO
Autor: Rainer Maria Rilke
Tradução: Tércio Redondo
Editora: Globo
Quanto: R$ 26 (152 págs.)
Avaliação: bom
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