São Paulo, segunda-feira, 18 de outubro de 2004

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Nelson Ascher

A guerra secreta da América

Que há hoje em dia uma crise geopolítica de grandes proporções, disso poucos duvidam. Já a respeito de sua natureza e causas, seus desdobramentos e desenlace, não existe consenso algum. Num extremo estão os que a interpretam como um autêntico choque de duas civilizações para as quais o planeta parece pequeno demais e, no outro, encontram-se os que a vêem como um epifenômeno exagerado por engano ou interesses mercenários.
Os volumes publicados nos últimos três anos sobre o assunto encheriam uma biblioteca. Cada leitor achará facilmente as obras que endossem suas pré-concepções, mas quem quiser um livro que, além de abordar a maioria dos fatos sabidos, procure encadeá-los através de especulações plausíveis, pode começar pelo recém-lançado "America's Secret War" (A Guerra Secreta da América), de George Friedman (Doubleday, EUA, 354 páginas). O autor fundou e dirige Stratfor (Strategic Forecasting/Previsões Estratégicas), uma firma privada de inteligência cujas análises, em geral, lançam mão do bom senso sem ignorar o quadro mais amplo.
O que o autor chama de Quarta Guerra Global (entre os EUA e o jihadismo internacional) nasceu da anterior, a Guerra Fria, como esta nascera da Segunda Guerra. Num trabalho de décadas, os americanos haviam contido o império soviético, cercando-o, em toda extensão, de aliados. Em 1979, porém, o levante islâmico derrubou um dos principais, o xá do Irã, e os russos invadiram o Afeganistão vizinho. Tomando isso como uma tentativa soviética de quebrar o cerco e alcançar o Golfo Pérsico, os EUA, mal-saídos do Vietnã, em vez de envolverem seus militares, preferiram se contrapor à ameaça utilizando forças locais.
A administração Carter recorreu a dois países que temiam tanto o Irã quanto a URSS para criar e enviar ao Afeganistão uma guerrilha islâmica. A casa real Saudita forneceu dinheiro e recrutas, enquanto os serviços de inteligência do Paquistão contribuíram com apoio logístico e organização. Os americanos treinaram e armaram os guerrilheiros. Após uma década de insucessos, os russos abandonaram o país e, em seguida, o bloco soviético desmoronou.
Garantida a vitória, os EUA se desinteressaram da região e, à medida que os sauditas não deixaram de financiar os islamistas, por causa de tensões domésticas, e os paquistaneses, cada vez mais islamisados, continuavam a tutelar o Afeganistão, a guerrilha, composta de muçulmanos de toda parte, saiu em busca de um novo adversário e o encontrou em seu aliado original, os Estados Unidos. Esta, segundo o autor, é a origem da Al Qaeda.
A meta final da rede em questão consiste em, revertendo séculos de declínio islâmico, restaurar a união das terras muçulmanas, recuperar, da Andaluzia ao Timor Leste, as perdidas e, ressuscitando o califado, expandi-lo, num momento posterior, planeta afora. Sua estratégia seria a de provocar os americanos na esperança de que, ao contra-atacarem, estes desencadeassem uma revolução pan-islâmica. Se os diversos atentados dos anos 90 surtiram pouco efeito, o de 11 de Setembro de 2001 não poderia ficar sem resposta, e a única defesa possível dos EUA era levar a batalha ao inimigo.
A Al Qaeda se sentia segura na Ásia Central e não imaginava que, com o auxílio ou anuência da Rússia, do Irã e do Paquistão, os americanos reagiriam tão rapidamente, construindo bases regionais e "alugando" um exército para desalojá-la do Afeganistão. Friedman acha que a batalha afegã final em Tora Bora foi antes um triunfo dos jihadistas, que teriam batido em retirada sem perdas desastrosas. Essa, todavia, é a parte menos fundamentada do livro.
Qual o próximo passo? Os americanos só poderiam desmantelar uma rede transnacional assim com a participação de aliados, não os europeus, mas os muçulmanos. A chave do problema residia em persuadir sauditas e paquistaneses a, enfrentando suas inclinações e opiniões públicas, perseguirem os islamistas acerca dos quais não se sabia se possuíam ou não armas de destruição em massa. Uma crise providencial que levou o Paquistão e a Índia à beira de um confronto nuclear colocou o ditador paquistanês Pervez Musharraf à mercê da superpotência.
Faltava a adesão da Arábia Saudita, maior financiadora da Al Qaeda. Esta foi obtida mediante a invasão do Iraque, que não apenas quebrou o tabu de não ocupar um país árabe como levou tropas ocidentais às fronteiras sauditas, sírias e iraquianas. Quanto à oposição franco-germânica, que almejava impor sua política exterior ao restante da Europa, ela fracassou graças à aliança entre britânicos e as nações do Mediterrâneo e Europa Centro-Oriental.
A invasão da Mesopotâmia é uma narrativa de erros sistemáticos corrigidos por acertos improvisados. A administração Bush contava novamente com a conivência do Irã, arquiinimigo do Iraque, e, a crermos no autor, havia inclusive um agente iraniano, Ahmed Chalabi, desinformando o Pentágono. Ela, no entanto, não antevira nem a influência que o Irã granjeara junto aos xiitas iraquianos nem a insurgência que Saddam planejara de antemão.
Friedman diz que a invasão era necessária, embora não pelas razões publicamente divulgadas, e considera o resultado atual um relativo sucesso, pois as casas de Saud e Musharraf acabaram compelidas a enfrentar os jihadistas, as ambições dos aiatolás, que precipitaram a revolta de Muqtada Al-Sadr, foram freadas e a insurreição segue confinada ao "triângulo sunita". O mais importante é que Bin Laden não desestabilizou nenhum governo muçulmano nem conseguiu, até o momento, perpetrar outro atentado devastador nos EUA.


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