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Nelson Ascher
A guerra secreta da América
Que há hoje em dia uma crise geopolítica de grandes
proporções, disso poucos duvidam. Já a respeito de sua natureza e causas, seus desdobramentos
e desenlace, não existe consenso
algum. Num extremo estão os que
a interpretam como um autêntico
choque de duas civilizações para
as quais o planeta parece pequeno demais e, no outro, encontram-se os que a vêem como um
epifenômeno exagerado por engano ou interesses mercenários.
Os volumes publicados nos últimos três anos sobre o assunto encheriam uma biblioteca. Cada
leitor achará facilmente as obras
que endossem suas pré-concepções, mas quem quiser um livro
que, além de abordar a maioria
dos fatos sabidos, procure encadeá-los através de especulações
plausíveis, pode começar pelo recém-lançado "America's Secret
War" (A Guerra Secreta da América), de George Friedman (Doubleday, EUA, 354 páginas). O autor fundou e dirige Stratfor (Strategic Forecasting/Previsões Estratégicas), uma firma privada de
inteligência cujas análises, em geral, lançam mão do bom senso
sem ignorar o quadro mais amplo.
O que o autor chama de Quarta
Guerra Global (entre os EUA e o
jihadismo internacional) nasceu
da anterior, a Guerra Fria, como
esta nascera da Segunda Guerra.
Num trabalho de décadas, os
americanos haviam contido o império soviético, cercando-o, em
toda extensão, de aliados. Em
1979, porém, o levante islâmico
derrubou um dos principais, o xá
do Irã, e os russos invadiram o
Afeganistão vizinho. Tomando
isso como uma tentativa soviética
de quebrar o cerco e alcançar o
Golfo Pérsico, os EUA, mal-saídos
do Vietnã, em vez de envolverem
seus militares, preferiram se contrapor à ameaça utilizando forças locais.
A administração Carter recorreu a dois países que temiam tanto o Irã quanto a URSS para criar
e enviar ao Afeganistão uma
guerrilha islâmica. A casa real
Saudita forneceu dinheiro e recrutas, enquanto os serviços de
inteligência do Paquistão contribuíram com apoio logístico e organização. Os americanos treinaram e armaram os guerrilheiros.
Após uma década de insucessos,
os russos abandonaram o país e,
em seguida, o bloco soviético desmoronou.
Garantida a vitória, os EUA se
desinteressaram da região e, à
medida que os sauditas não deixaram de financiar os islamistas,
por causa de tensões domésticas, e
os paquistaneses, cada vez mais
islamisados, continuavam a tutelar o Afeganistão, a guerrilha,
composta de muçulmanos de toda parte, saiu em busca de um
novo adversário e o encontrou em
seu aliado original, os Estados
Unidos. Esta, segundo o autor, é a
origem da Al Qaeda.
A meta final da rede em questão consiste em, revertendo séculos de declínio islâmico, restaurar
a união das terras muçulmanas,
recuperar, da Andaluzia ao Timor Leste, as perdidas e, ressuscitando o califado, expandi-lo,
num momento posterior, planeta
afora. Sua estratégia seria a de
provocar os americanos na esperança de que, ao contra-atacarem, estes desencadeassem uma
revolução pan-islâmica. Se os diversos atentados dos anos 90 surtiram pouco efeito, o de 11 de Setembro de 2001 não poderia ficar
sem resposta, e a única defesa
possível dos EUA era levar a batalha ao inimigo.
A Al Qaeda se sentia segura na
Ásia Central e não imaginava
que, com o auxílio ou anuência
da Rússia, do Irã e do Paquistão,
os americanos reagiriam tão rapidamente, construindo bases regionais e "alugando" um exército
para desalojá-la do Afeganistão.
Friedman acha que a batalha afegã final em Tora Bora foi antes
um triunfo dos jihadistas, que teriam batido em retirada sem perdas desastrosas. Essa, todavia, é a
parte menos fundamentada do livro.
Qual o próximo passo? Os americanos só poderiam desmantelar
uma rede transnacional assim
com a participação de aliados,
não os europeus, mas os muçulmanos. A chave do problema residia em persuadir sauditas e paquistaneses a, enfrentando suas
inclinações e opiniões públicas,
perseguirem os islamistas acerca
dos quais não se sabia se possuíam ou não armas de destruição em massa. Uma crise providencial que levou o Paquistão e a
Índia à beira de um confronto
nuclear colocou o ditador paquistanês Pervez Musharraf à mercê
da superpotência.
Faltava a adesão da Arábia
Saudita, maior financiadora da
Al Qaeda. Esta foi obtida mediante a invasão do Iraque, que
não apenas quebrou o tabu de
não ocupar um país árabe como
levou tropas ocidentais às fronteiras sauditas, sírias e iraquianas.
Quanto à oposição franco-germânica, que almejava impor sua política exterior ao restante da Europa, ela fracassou graças à aliança entre britânicos e as nações do
Mediterrâneo e Europa Centro-Oriental.
A invasão da Mesopotâmia é
uma narrativa de erros sistemáticos corrigidos por acertos improvisados. A administração Bush
contava novamente com a conivência do Irã, arquiinimigo do
Iraque, e, a crermos no autor, havia inclusive um agente iraniano,
Ahmed Chalabi, desinformando
o Pentágono. Ela, no entanto, não
antevira nem a influência que o
Irã granjeara junto aos xiitas iraquianos nem a insurgência que
Saddam planejara de antemão.
Friedman diz que a invasão era
necessária, embora não pelas razões publicamente divulgadas, e
considera o resultado atual um
relativo sucesso, pois as casas de
Saud e Musharraf acabaram
compelidas a enfrentar os jihadistas, as ambições dos aiatolás, que
precipitaram a revolta de Muqtada Al-Sadr, foram freadas e a insurreição segue confinada ao
"triângulo sunita". O mais importante é que Bin Laden não desestabilizou nenhum governo
muçulmano nem conseguiu, até o
momento, perpetrar outro atentado devastador nos EUA.
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