São Paulo, sábado, 18 de novembro de 2000

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DRAUZIO VARELLA

Sexo e morte

Tudo o que nasce um dia vai morrer. Parece verdade universal, mas está longe de sê-lo. A morte não apareceu simultaneamente com a vida na Terra. A constatação de que ambos os acontecimentos possam existir de forma independente é um dos princípios mais importantes da biologia.
No mundo que nos cerca, estamos tão habituados ao ciclo de nascimento, amadurecimento e morte que o aceitamos como destino definitivo de todos os seres vivos. Uma espécie de caminho preestabelecido por capricho da natureza ou por um criador transcendental, como preferem muitos.
De fato, plantas, mosquitos, cobras, pássaros e homens morrem inexoravelmente, depois de um período variável de tempo: poucos dias, se for um inseto; alguns anos, no caso dos mamíferos.
Embora possa se extinguir a qualquer momento, por obra do acaso, a vida nessas espécies confirma a impressão de trazer com ela uma programação prévia de duração máxima. Alheia às virtudes do indivíduo -vencido esse período-, a morte cobra seu tributo impiedoso.
Do ponto de vista biológico, no entanto, durante 3 bilhões de anos a vida na Terra conheceu apenas a morte acidental: por falta de nutrientes, variação de temperatura ou mudança drástica na composição do meio. Nesse período, desde que as condições externas permanecessem favoráveis, a imortalidade não era sonho inatingível.
Dos primeiros seres vivos, formados há 4 bilhões de anos, até mais ou menos 1 bilhão de anos atrás, quando apareceram as primeiras espécies constituídas por agrupamentos de células, a Terra foi povoada exclusivamente por seres unicelulares.
Na evolução, os primeiros organismos a aparecer foram as bactérias, formas primitivas de vida de tanto sucesso ecológico que não só estão aí até hoje como representam metade da biomassa terrestre, isto é, metade da soma dos pesos de todas as espécies existentes, incluindo árvores, baleias, elefantes e mais.
A estratégia evolucionista das bactérias foi a simplicidade. São constituídas por um material genético circular (DNA), protegido por uma membrana externa e mais nada.
Para se reproduzir, a bactéria-mãe faz uma cópia do material genético, alonga o corpo, adquire a forma de um oito e se divide em duas bactérias-filhas, portadoras de DNA idêntico ao da mãe que o duplicou.
Em obediência cega ao mandamento supremo da vida: "crescei e multiplicai-vos", as bactérias-filhas também duplicarão seus DNAs e formarão quatro netas da ancestral, que lhes darão oito bisnetas, depois 16, 32, 64... Pode-se falar em morte obrigatória, inseparável da vida, nesse caso?
Se você fosse capaz de se dividir em duas cópias idênticas, poderíamos dizer que você morreu? Onde estaria seu cadáver?
Na competição imposta pela seleção natural, a desvantagem desse tipo de divisão está na igualdade. Descontados os pequenos erros ocorridos na duplicação do DNA materno, as bactérias-filhas são em tudo idênticas às mães.
Numa colônia de seres geneticamente iguais, qualquer alteração das condições do meio pode ser fatal à comunidade inteira, incapaz de se adaptar.
As bactérias são máquinas de copiar DNA para a multiplicação. Podem fazê-lo a cada 30 minutos. Se não morressem por acidente, em 4 bilhões de anos teriam tido tempo para inundar a Terra e o espaço sideral. Desde que as condições externas permaneçam favoráveis, no entanto, a morte como parte de um programa preestabelecido não existe entre elas.
Essa incapacidade coletiva de adaptação que a identidade genética traz não resistiu à pressão seletiva, que resultou no aparecimento dos primeiros seres multicelulares, no último bilhão de anos.
Indivíduos formados por muitas células se reproduzem de forma mais complexa. Neles, o DNA não costuma fazer cópias inteiras de si mesmo para transmiti-las à descendência, como nas bactérias. Ao contrário, a molécula de DNA se divide ao meio para destinar aos filhos apenas metade das informações genéticas do organismo-mãe. Salvo raras exceções, a maternidade solitária é impossível para os seres multicelulares.
Em busca da possibilidade de criar indivíduos geneticamente díspares, mais versáteis para enfrentar os rigores da seleção natural, a multicelularidade inaugurou o sexo na face da Terra.
Embora a morte como acidente possa abreviar a duração da vida em todas as espécies, apenas a reprodução sexual está irreversivelmente associada à morte pré-programada, inevitável, como se os genes herdados de nossos pais nos impusessem o dever natural de nos retirarmos um dia para deixar espaço aos descendentes.
O sexo inventou a morte inexorável.


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