São Paulo, quinta-feira, 18 de novembro de 2010

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NINA HORTA

Os livros da infância


Rezava para Tarzan me resgatar daquela vida burguesa, das proibições, das implicâncias da mãe


E DAÍ me perguntam sobre livros. Livros? Mas essa resposta é a resposta de uma vida. Jamais fiquei sem um livro na mão desde o dia em que aprendi a ler. Aliás, já arrastando o livro que minha mãe lia para mim. Pituchinha é uma bonequinha... "Juca e Chico", o Tico-Tico.
Assim, sem pensar muito, lembro das moedas gastas com gibis numa banca e da volta para casa com certa culpa. Não sei o porquê, mas achava que não era literatura infantil. Me enfiei debaixo da escada para ler, o pai me achou e ouvi uma conferência dele com minha mãe sobre o que eu podia ou não ler. E se os gibis eram ou não uma coisa boa.
Chegaram à conclusão de que, a partir da ideia de que eu entendesse o que estava lendo, poderia ler qualquer coisa. Vejo os pais e mães atuais preocupados com a pouca literatura para adolescentes. É para ler tudo...
Depois, aos sete anos, um livro que cabia no bolso do pai, de couro macio, em escamas -"As Diabruras de Sofia". Estava selada a minha vida, como uma praga jogada no meu futuro. "Pelo resto da tua existência estarás fadada a andar com um livro na mão." Não deu outra.
Foi o pedaço da vida em que conviveram "As Meninas Exemplares" com "Dom Quixote", "Os Três Mosqueteiros", Capitão Marvel, Super-Homem, Dick Tracy, o Fantasma, Mandrake e Namor. Acho que não houve paralelo de tanto prazer na vida adulta.
Rezava como se reza para os santos para Tarzan me resgatar daquela vida burguesa, das proibições, das implicâncias da mãe. As lágrimas escorriam pelo rosto e, pela janela, eu já o via chegando, saltando sobre os telhados com sua sunga-sainha que se levantava ao vento.
E uns contos de fadas da Melhoramentos, uns livrinhos finos, com gravuras antigas. As vizinhas me emprestavam a coleção azul, a coleção rosa. Claro que a maioria dos livros não deixa traços na sua vida cinquenta anos depois. São uma lembrança fugidia, eram bombons que eu comia de dois em dois, com as pernas para cima, no sofá.
Parece que começaram a me entupir de livros daí em diante, como se alimentam os gansos, porque não me lembro de comprá-los sozinha. "Iracema", "O Guarani", Pedrinho e Narizinho, o capitão Nemo, "O Conde de Montecristo", Cyrano, "O Talismã", "Ivanhoé". E começou uma mania interessante. Se lia um livro de um autor, precisava ler todos. Todos, sem exceção. E ia atrás.
Nunca li "Tesouro da Juventude". Grande frustração. Talvez fosse uma coleção muito cara.
No colégio de freiras, havia retiros espirituais nos quais se liam livros edificantes e se rezava. Eram sobre a vida dos santos, resumidos, escolhidos, cheios de diminutivos, um porre. As freiras passavam pelas carteiras observando se não estávamos lendo outra coisa. A amiga Georgeana, com o livro encapado, foi pilhada e respondeu, vermelha: "São Sócrates, madre". Tive mais sorte, esqueceram de retirar o padre Vieira e santo Agostinho. Só me lembro que levantei deslumbrada da carteira, mas, "ma mère", a senhora leu isto? Tremi com a prosa do Vieira, aquilo era bom, muito bom, ninguém me contara que um padre poderia ser legal assim.
Essa é a fase infantil de leituras para mais tarde escrever sobre comida. Virão outras, logo depois.

ninahorta@uol.com.br


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