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Livros - Crítica/"A Bela Senhora Seidenman"
Romance envolve leitor com personagens do extermínio
Szczypiorski constrói cenário da perseguição aos judeus em narrativa escrita com paixão
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
O nome do autor, com 14
consoantes, identifica
facilmente sua nacionalidade: Andrzej Szczypiorski
(1924-2000; pronuncia-se
"Andjei Chipiorsqui") nasceu
na Polônia. O que já é uma recomendação para seu livro: a literatura polonesa é fértil em
grandes autores, como o Jan
Potocki (1761-1815), de "Manuscrito Encontrado em Zaragoza"; o nobelizado Henryk
Sienkiewicz (1846-1916), famoso pelo épico "Quo Vadis"; Bruno Schulz (1892-1942), êmulo e
admirador de Kafka, com "A
Rua dos Crocodilos"; Witold
Gombrowicz (1904-1969), que
viveu anos na Argentina e deixou-nos "Ferdydurke", adaptado para o cinema por Jerzy
Skolimowski; Stanislaw Lem
(1921-2006), que inovou a ficção científica com "Solaris",
também transformado em filme, por Andrei Tarkovski.
"A Bela Senhora Seidenman", de Szczypiorski (com
tradução e úteis notas de
Henryk Siewierski), romance
já traduzido em 20 idiomas, é
um digno continuador dessa
tradição, o que se explica, em
grande parte, pela trajetória do
autor.
Jornalista e ficcionista,
Szczypiorski foi um ativo militante; participou na resistência
contra os nazistas, passou por
um campo de concentração,
alinhou-se com a oposição democrática contra o governo
stalinista nos anos 70 e foi eleito senador pelo movimento Solidariedade (mas, quando este
assumiu um caráter direitista,
desligou-se, o que dá testemunho de sua independência).
Paixão
Estamos diante de um romance de idéias, mas escrito
com uma paixão avassaladora,
que envolve por completo o leitor. O cenário é a Varsóvia ocupada pelos nazistas, no tenso
período em que os judeus estavam sendo enviados para o
extermínio.
A senhora Seidenman, uma
judia que, ajudada por amigos
poloneses, consegue convencer
com sucesso o comandante nazista de que é polonesa, na verdade nem é a figura principal
(diferente das edições em francês, inglês e português, em polonês a obra intitula-se "Poczatek", o começo).
Junto dela temos uma galeria
de personagens, todos envolvidos, direta ou indiretamente,
na perseguição aos judeus: a irmã Verônica, que salva crianças judias convertendo-as ao
catolicismo; o jovem rebelde
Pawel, um alter-ego do autor; o
alemão Mueller, que ajuda a senhora Seidenman, enganando
o comandante nazista Stukler;
o assaltante Wiktor Suchowiak,
que salva a menina judia Joasia. É verdade que há também
tipos abomináveis, como Bronek Blutman, que sobrevive denunciando outros judeus.
Aliás, se algum reparo pode
ser feito ao romance, é exatamente este: fica visível a ânsia
do autor pela equanimidade, o
que se manifesta na seleção de
personagens -em cada grupo
existem os "maus" e os "bons".
Mas predominam estes últimos, a demonstrar que, mesmo
nas piores circunstâncias, podemos encontrar gente decente e idealista.
É, convenhamos, uma mensagem que não ouvíamos desde
os tempos da literatura engajada. Mas é uma mensagem resultante de coerência pessoal
do autor: "Uma Missa para a Cidade de Arras" (1971), que abordava a perseguição a judeus e
heréticos no século 15, já se
constituía em resposta à campanha anti-semita então em
curso em seu país.
Andrzej Szczypiorski deu
uma importante colaboração
para melhorar as relações entre
poloneses, alemães e judeus, o
que lhe valeu o Prêmio de Literatura Européia (Áustria) e o
Prêmio Nelly Sachs, este com o
nome da grande poeta judia.
Em homenagem póstuma,
em 2002, o então ministro de
Relações Exteriores da Alemanha, Joschka Fischer, ressaltou
a coragem do escritor frente
aos desafios totalitários do século 20. Coragem da qual este
livro dá admirável testemunho.
A BELA SENHORA SEIDENMAN
Autor: Andrzej Szczypiorski
Tradução: Henryk Siewierski
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 39 (240 págs.)
Avaliação: ótimo
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