São Paulo, sábado, 19 de janeiro de 2008

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Livros - Crítica/"A Bela Senhora Seidenman"

Romance envolve leitor com personagens do extermínio

Szczypiorski constrói cenário da perseguição aos judeus em narrativa escrita com paixão

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

O nome do autor, com 14 consoantes, identifica facilmente sua nacionalidade: Andrzej Szczypiorski (1924-2000; pronuncia-se "Andjei Chipiorsqui") nasceu na Polônia. O que já é uma recomendação para seu livro: a literatura polonesa é fértil em grandes autores, como o Jan Potocki (1761-1815), de "Manuscrito Encontrado em Zaragoza"; o nobelizado Henryk Sienkiewicz (1846-1916), famoso pelo épico "Quo Vadis"; Bruno Schulz (1892-1942), êmulo e admirador de Kafka, com "A Rua dos Crocodilos"; Witold Gombrowicz (1904-1969), que viveu anos na Argentina e deixou-nos "Ferdydurke", adaptado para o cinema por Jerzy Skolimowski; Stanislaw Lem (1921-2006), que inovou a ficção científica com "Solaris", também transformado em filme, por Andrei Tarkovski.
"A Bela Senhora Seidenman", de Szczypiorski (com tradução e úteis notas de Henryk Siewierski), romance já traduzido em 20 idiomas, é um digno continuador dessa tradição, o que se explica, em grande parte, pela trajetória do autor.
Jornalista e ficcionista, Szczypiorski foi um ativo militante; participou na resistência contra os nazistas, passou por um campo de concentração, alinhou-se com a oposição democrática contra o governo stalinista nos anos 70 e foi eleito senador pelo movimento Solidariedade (mas, quando este assumiu um caráter direitista, desligou-se, o que dá testemunho de sua independência).

Paixão
Estamos diante de um romance de idéias, mas escrito com uma paixão avassaladora, que envolve por completo o leitor. O cenário é a Varsóvia ocupada pelos nazistas, no tenso período em que os judeus estavam sendo enviados para o extermínio.
A senhora Seidenman, uma judia que, ajudada por amigos poloneses, consegue convencer com sucesso o comandante nazista de que é polonesa, na verdade nem é a figura principal (diferente das edições em francês, inglês e português, em polonês a obra intitula-se "Poczatek", o começo).
Junto dela temos uma galeria de personagens, todos envolvidos, direta ou indiretamente, na perseguição aos judeus: a irmã Verônica, que salva crianças judias convertendo-as ao catolicismo; o jovem rebelde Pawel, um alter-ego do autor; o alemão Mueller, que ajuda a senhora Seidenman, enganando o comandante nazista Stukler; o assaltante Wiktor Suchowiak, que salva a menina judia Joasia. É verdade que há também tipos abomináveis, como Bronek Blutman, que sobrevive denunciando outros judeus.
Aliás, se algum reparo pode ser feito ao romance, é exatamente este: fica visível a ânsia do autor pela equanimidade, o que se manifesta na seleção de personagens -em cada grupo existem os "maus" e os "bons".
Mas predominam estes últimos, a demonstrar que, mesmo nas piores circunstâncias, podemos encontrar gente decente e idealista.
É, convenhamos, uma mensagem que não ouvíamos desde os tempos da literatura engajada. Mas é uma mensagem resultante de coerência pessoal do autor: "Uma Missa para a Cidade de Arras" (1971), que abordava a perseguição a judeus e heréticos no século 15, já se constituía em resposta à campanha anti-semita então em curso em seu país.
Andrzej Szczypiorski deu uma importante colaboração para melhorar as relações entre poloneses, alemães e judeus, o que lhe valeu o Prêmio de Literatura Européia (Áustria) e o Prêmio Nelly Sachs, este com o nome da grande poeta judia.
Em homenagem póstuma, em 2002, o então ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Joschka Fischer, ressaltou a coragem do escritor frente aos desafios totalitários do século 20. Coragem da qual este livro dá admirável testemunho.


A BELA SENHORA SEIDENMAN
Autor:
Andrzej Szczypiorski
Tradução: Henryk Siewierski
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 39 (240 págs.)
Avaliação: ótimo


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