São Paulo, sábado, 19 de fevereiro de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

Escrita impiedosa constrói obra de Affonso Ferreira

Melancolia de narrador marca "Minha Mãe Se Matou sem Dizer Adeus"

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

Como "Malone Morre", de Beckett, o novo livro de Evandro Affonso Ferreira, "Minha Mãe Se Matou sem Dizer Adeus", é o monólogo de um sujeito bem próximo da morte. Há outras semelhanças entre os livros, mas são sobretudo as diferenças que chamam a atenção.
O narrador de Beckett é um homem cuja subjetividade se esfarelou e já não produz nenhum valor ("Para mim acabou, não direi mais eu", escreve).
Com ela, desfez-se o mundo mesmo, como referência objetiva da ficção, a qual se revela como jogo totalmente arbitrário. As palavras apenas reiteram o sem-sentido da vida.
O narrador de Affonso Ferreira, ao contrário, é essencialmente antiniilista. "Não sou (niilista). Caso contrário não ficaria driblando com vocábulos o desejo de cortar a teia da vida", diz. Para ele, a palavra é "ponto de apoio", "devoção", "refúgio"... E pode ser mesmo uma forma de oração: "Possivelmente estou rezando sem saber".
Este narrador é um escritor octogenário, sentado numa "mesa-mirante" de uma confeitaria, que estabelece diálogos "telepáticos" com os clientes, enquanto regurgita o seu grande trauma: o suicídio da mãe, que se matou quando ele era criança, sem deixar nenhum bilhete.
O silêncio materno gerou no filho um sentimento de mal-estar em relação à vida e uma melancolia irrevogável.
Mesmo na velhice, ele ainda se debate para completar o trabalho de luto -em vão, pois retorna sempre ao mesmo ponto.
É a luta do personagem para escapar do passado e livrar a sua narrativa da culpa e da repetição compulsiva que alimenta este romance patético, de elaborada construção, escrita impiedosa e feroz ressentimento, como raramente se vê na literatura brasileira.

MINHA MÃE SE MATOU SEM
DIZER ADEUS

AUTOR Evandro Affonso Ferreira
EDITORA Record
QUANTO R$ 27,90 (127 págs.)
AVALIAÇÃO bom



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