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COMENTÁRIO
Vida e morte em "Grande Sertão"
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Distração é abstração,
alheamento, bobeada, desatenção, descuido, lapso, vacilada.
Divertir-se é sair da versão, desviar-se. Enfim, tudo o que é necessário para ler "Grande Sertão: Veredas" e percorrer a exposição
montada por Bia Lessa sobre o livro de Guimarães Rosa, em um
dos espaços do novo Museu da
Língua Portuguesa.
É preciso munir-se de todos os
erros, desprender-se da esperteza
descolada e sair dos trilhos para
percorrer o caminho de água de
Diadorim, o caminho de fogo do
Diabo e poder enxergar as coisas,
no meio da neblina que ocupa a
sala. Não é preciso estar atento ou
forte e nem mesmo temer a morte, já que ela nos aguarda no espelho do banheiro, onde o vulto de
um homem morto ocupa o espaço do nosso reflexo.
Aliás, vida e morte, nesse caminho incerto, não são mais tão diferentes quanto gostaríamos de
acreditar no dia-a-dia. Afinal, pode ser que Deus não exista, mas
ele "existe mesmo quando não
há" e o Diabo, "mesmo a gente sabendo que ele não existe, aí é que
ele toma conta de tudo".
E se a separação entre morte e
vida é indefinida, desacertam-se
também os outros eixos: errado e
certo, culto e iletrado, feminino e
masculino são categorias confortavelmente distintas, mas que, no
"Grande Sertão", confundem-se
sempre. E quanto mais confusos
estivermos no meio dessas aparentes certezas, aí é que estaremos
mais preparados para lê-lo. Pois
não é o interlocutor urbano e letrado, ou melhor, não é o próprio
leitor quem é desestruturado pelo
sertanejo Riobaldo? Não somos
sugados pelo sertão de maneira a
terminar a leitura tendo certeza
de que o "sertão é o mundo" e
mais, de que o sertão sou eu?
A pergunta que fica para uma
brasileira descendente de europeus, depois de visitar o Museu da
Língua Portuguesa e de passar pela língua-mundo de Guimarães
Rosa, é a seguinte: que língua é essa, falada nesse lugar de onde a
gente sempre quer fugir, mas de
onde não quer sair por nada desse
mundo, assim que escuta uma
frase como "amigo é que a gente
seja, mas sem precisar de saber o
por que é que é"?
Ou não foi lá, na Estação da Luz,
depois de visitar a exposição, que
vi de passagem uma mulher carregada de pacotes, indo pegar o
trem e dizendo: "Doença de bicho
homem é o tempo. Não vence?"
Lá em cima, no museu, Fernando Pessoa responde: é uma língua
"impossivelmente real, desconhecidamente certa".
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