São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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COMENTÁRIO

Vida e morte em "Grande Sertão"

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Distração é abstração, alheamento, bobeada, desatenção, descuido, lapso, vacilada. Divertir-se é sair da versão, desviar-se. Enfim, tudo o que é necessário para ler "Grande Sertão: Veredas" e percorrer a exposição montada por Bia Lessa sobre o livro de Guimarães Rosa, em um dos espaços do novo Museu da Língua Portuguesa.
É preciso munir-se de todos os erros, desprender-se da esperteza descolada e sair dos trilhos para percorrer o caminho de água de Diadorim, o caminho de fogo do Diabo e poder enxergar as coisas, no meio da neblina que ocupa a sala. Não é preciso estar atento ou forte e nem mesmo temer a morte, já que ela nos aguarda no espelho do banheiro, onde o vulto de um homem morto ocupa o espaço do nosso reflexo.
Aliás, vida e morte, nesse caminho incerto, não são mais tão diferentes quanto gostaríamos de acreditar no dia-a-dia. Afinal, pode ser que Deus não exista, mas ele "existe mesmo quando não há" e o Diabo, "mesmo a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo".
E se a separação entre morte e vida é indefinida, desacertam-se também os outros eixos: errado e certo, culto e iletrado, feminino e masculino são categorias confortavelmente distintas, mas que, no "Grande Sertão", confundem-se sempre. E quanto mais confusos estivermos no meio dessas aparentes certezas, aí é que estaremos mais preparados para lê-lo. Pois não é o interlocutor urbano e letrado, ou melhor, não é o próprio leitor quem é desestruturado pelo sertanejo Riobaldo? Não somos sugados pelo sertão de maneira a terminar a leitura tendo certeza de que o "sertão é o mundo" e mais, de que o sertão sou eu?
A pergunta que fica para uma brasileira descendente de europeus, depois de visitar o Museu da Língua Portuguesa e de passar pela língua-mundo de Guimarães Rosa, é a seguinte: que língua é essa, falada nesse lugar de onde a gente sempre quer fugir, mas de onde não quer sair por nada desse mundo, assim que escuta uma frase como "amigo é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é"?
Ou não foi lá, na Estação da Luz, depois de visitar a exposição, que vi de passagem uma mulher carregada de pacotes, indo pegar o trem e dizendo: "Doença de bicho homem é o tempo. Não vence?"
Lá em cima, no museu, Fernando Pessoa responde: é uma língua "impossivelmente real, desconhecidamente certa".


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