São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Petra reverencia e reinventa Shakespeare

SERGIO SALVIA COELHO
ENVIADO ESPECIAL A SÃO JOSÉ DO RIO PRETO

Com o slogan bastante abrangente, "Américas disseminadas por todos os lados e dentro de cada um", Rio Preto propõe este ano a redescoberta da América. Não enquanto uma identidade pré-moldada ideologicamente, mas enquanto um processo constante de sínteses improváveis.
Único representante internacional da América Latina no festival, o experiente Teatro Petra, 19, da Colômbia, se incumbiu de dar mostras da existência deste continente-estado de espírito. Com "Mosca", adaptação de "Tito Andrônico", estipula alguns parâmetros com grande maestria.
O grande desafio deste texto do princípio da carreira de Shakespeare é acertar seu tom. Grotescamente sanguinário, levando ao inverossímil uma trama de assassinatos, mutilações, estupros e perfídias diversas do jogo do poder, é impossível disfarçar uma atmosfera de paródia. Logo, as tentações para a direção são ora desautorizar tudo pelo deboche, ora forçar uma alegoria política unívoca, que pode ofuscar o que há de anarquista na barroca imaginação shakespeareana.
O primeiro mérito desta montagem, portanto, é a adaptação do diretor-ator-dramaturgista Fabio Rubiano, que, mantendo as linhas gerais da trama, reatualiza o texto no que tem de melhor: no lugar de uma retórica reverente e oca, uma vertiginosa sucessão de frases de impacto, de anacronismos precisos, com níveis de linguagem que vão do lírico ao pornográfico.
Irreverente sem perder a elegância, essa síntese de opostos é perfeitamente traduzida em imagens pelo figurino de uma exuberância kitsch, reciclagem do lixo cultural, e pelos adereços tão caprichosamente detalhados que os atores não hesitam em passá-los ao público, para serem examinados em pleno espetáculo.
Em um cenário por contraste despojado, são os atores, porém, que assumem a responsabilidade pela peça. Contracenando com o diretor de igual para igual, não há ator aqui que não compartilhe da criação do espetáculo com inteligência e precisão de marcas, tornando clara a alegoria para quem quiser vê-la, sem diminuir o prazer das soluções cênicas geniais.
Assim, quando luvas trocam de mãos para sugerirem dedos mutilados, ou um hilário avestruz entra em cena, a falsa ingenuidade estética dos altares barrocos latino-americanos se une a mais instigante modernidade: Appolinaire, Buñuel, Gerald Thomas. Com galhardia americana, com a reverência que se deve aos clássicos, isto é, a de aceitar o desafio de reinventá-los, o Teatro Petra reinjeta juventude em Shakespeare.


Avaliação:     

Texto Anterior: Festival de Rio Preto: Alternativa, Bararena sucede lugarUmbigo
Próximo Texto: Arte de sentir: Novo museu repassa a história pelo olfato
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.