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NELSON ASCHER
Camarada Musa
A Primeira Internacional
Literária, uma rede de escritores que começou a coalescer na
segunda década do século 20,
nasceu como resposta a duas circunstâncias, uma artística e a outra, histórica. A artística decorria
de problemas comuns que se colocaram aos escritores e aos poetas
cuja carreira principiara, sob o
signo do simbolismo, na virada
do século anterior. Esse movimento, que se difundira pela Europa e Américas, alcançara lugares como o Japão, a China e a Índia, criando afinidades e amizades como a que se estabeleceu entre o irlandês William B. Yeats
(1865-1939) e o bengalês Rabindranath Tagore (1861-1941) ou
carreiras estranhamente paralelas como a do neogrego Constantinos Kavafys (1863-1933) e Fernando Pessoa (1888-1935).
Quanto à história, a experiência comum que desafiou os poetas
já na sua maturidade e se impôs à
geração seguinte, foi a guerra de
1914-18. O primeiro conflito planetário da era industrial obrigou
os escritores que tomaram parte
nele a recalibrarem sua visão de
mundo, pois a conflagração, desencadeada 90 anos atrás, simplesmente não "cabia" na poesia
que sabiam fazer, e isso os levou a
explorarem novos recursos. Muitos dos que combateram então,
por exemplo os francófonos Guillaume Apollinaire (1880-1918) e
Blaise Cendrars (1887-1961), os
germanófonos Georg Trakl (1887-1914) e August Stramm (1874-1915) ou o italiano Giuseppe Ungaretti (1888-1970), foram de certo modo obrigados a romper as
convenções estéticas da era anterior para fazerem justiça àquela
que surgia. Os resultados de seus
esforços paralelos se tornaram conhecidos através do sufixo "ismos": expressionismo, futurismo,
dadaísmo etc., cada qual destes
envolvendo igualmente outras
artes.
Como esses "ismos" literários
não lhes parecessem suficientes,
inúmeros poetas saíram em busca
de algum dos "ismos" políticos
que apareceram ou se consolidaram durante ou depois da guerra:
socialismo e fascismo, comunismo e nazismo. Embora não faltassem escritores que se ligaram
aos de direita, foram antes os de
esquerda que os seduziram, uma
vez que, desencantados com os
nacionalismos e o capitalismo
nos quais viam a origem da catástrofe, a Revolução Russa lhes prometia uma solução não contaminada pelo passado.
E foi, portanto, em torno dos
anos 20 que se inaugurou entre
artes e a política uma confluência
mais vigorosa do que quantas a
antecederam. Seus produtos, que
não terminaram nem com o final
da Guerra Fria, marcaram todo o
século que passou. Alguns foram
notáveis e outros, ridículos. O
conjunto veio acompanhado de
discussões estéticas, políticas ou
filosóficas que oscilaram entre o
brilhante e o dogmático.
Olhando retrospectivamente essa convergência, é fácil constatar
que nenhum autor significativo
dessa época escapou inteiramente
à sua força gravitacional. Seu legado é o de que até hoje as discussões sobre a qualidade de um poeta se acompanham de indagações
a respeito de suas simpatias políticas. Além disso, as opções estilísticas vêm desde então associadas
a um sinal: estas são de esquerda
e aquelas, de direita. Essa associação advém menos das características intrínsecas de tal ou qual
obra do que do momento em que
o debate se interrompeu e os pensadores oficiais anunciaram seu
veredicto irrecorrível.
Ocorre que, embora as formas e
os recursos poéticos não sejam
ideologicamente neutros, seu sentido é dado não tanto por uma
verdade interior e imutável que a
garimpagem crítica e a estratosfera filosófica possam constatar e
atestar quanto por sua história,
ou melhor, histórias diferentes em
cada país. A discussão sobre as
formas fixas e as livres ilustra
bem esse ponto. Na tradição francesa ou luso-brasileira a metrificação e a rima têm sido consideradas uma herança da alta cultura gestada nas cortes e perpetuada por aristocratas e bacharéis.
Na russa ou alemã, é o contrário
que se verifica, de modo que as
formas fixas são vistas como populares e as livres, como uma moda divulgada por gente elitista e
cosmopolita.
Enquanto prevaleceu a orientação soviética, poetas como os
franceses Louis Aragon (1897-1982) e Eugène Guillevic (1907-97) aderiram com habilidade se
bem que nem sempre com convicção às formas fixas. Conforme
Drummond e Vinicius de Morais
se aproximaram das doutrinas
oficiais, eles trocaram o verso livre por sonetos e baladas. Conversões semelhantes foram comuns
em toda parte e, por mais que
soem superficiais, elas determinaram o que, num longo período,
mereceria, em termos formais, ser
chamado de poesia de esquerda.
A partir dos anos 30, os vínculos
originalmente voluntários entre
os poetas que compartilhavam
uma visão de mundo se institucionalizaram e, seja os do partido, seja os "companheiros de viagem" se incorporaram a uma rede de congressos e diatribes, de
premiações e excomunhões, de revistas, traduções etc. Essa rede,
que uniu europeus a asiáticos a
africanos a sul-americanos e assim por diante, malgrado seus altos e baixos, ajudou a definir e a
promover a linguagem da poesia
moderna.
A razão central de tal sucesso é
clara: a rede em questão, do chileno Pablo Neruda (1904-73) ao peruano César Vallejo (1892-1938),
do italiano Salvatore Quasimodo
(1901-68) ao tcheco Vitezlav Nezval (1900-58), do escocês Hugh
MacDiarmid (1892-1978) ao espanhol Rafael Alberti (1902-2001), do sueco Arthur Lundkvist
(1906-91) ao alemão Bertolt
Brecht (1898-1956), do grego Ianis
Ritsos (1909-90) ao turco Nazim
Hikmet (1902-63), atraiu grande
parte dos maiores (e mais produtivos) nomes poéticos dos últimos
cem anos.
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