São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2004

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NELSON ASCHER

Camarada Musa

A Primeira Internacional Literária, uma rede de escritores que começou a coalescer na segunda década do século 20, nasceu como resposta a duas circunstâncias, uma artística e a outra, histórica. A artística decorria de problemas comuns que se colocaram aos escritores e aos poetas cuja carreira principiara, sob o signo do simbolismo, na virada do século anterior. Esse movimento, que se difundira pela Europa e Américas, alcançara lugares como o Japão, a China e a Índia, criando afinidades e amizades como a que se estabeleceu entre o irlandês William B. Yeats (1865-1939) e o bengalês Rabindranath Tagore (1861-1941) ou carreiras estranhamente paralelas como a do neogrego Constantinos Kavafys (1863-1933) e Fernando Pessoa (1888-1935).
Quanto à história, a experiência comum que desafiou os poetas já na sua maturidade e se impôs à geração seguinte, foi a guerra de 1914-18. O primeiro conflito planetário da era industrial obrigou os escritores que tomaram parte nele a recalibrarem sua visão de mundo, pois a conflagração, desencadeada 90 anos atrás, simplesmente não "cabia" na poesia que sabiam fazer, e isso os levou a explorarem novos recursos. Muitos dos que combateram então, por exemplo os francófonos Guillaume Apollinaire (1880-1918) e Blaise Cendrars (1887-1961), os germanófonos Georg Trakl (1887-1914) e August Stramm (1874-1915) ou o italiano Giuseppe Ungaretti (1888-1970), foram de certo modo obrigados a romper as convenções estéticas da era anterior para fazerem justiça àquela que surgia. Os resultados de seus esforços paralelos se tornaram conhecidos através do sufixo "ismos": expressionismo, futurismo, dadaísmo etc., cada qual destes envolvendo igualmente outras artes.
Como esses "ismos" literários não lhes parecessem suficientes, inúmeros poetas saíram em busca de algum dos "ismos" políticos que apareceram ou se consolidaram durante ou depois da guerra: socialismo e fascismo, comunismo e nazismo. Embora não faltassem escritores que se ligaram aos de direita, foram antes os de esquerda que os seduziram, uma vez que, desencantados com os nacionalismos e o capitalismo nos quais viam a origem da catástrofe, a Revolução Russa lhes prometia uma solução não contaminada pelo passado.
E foi, portanto, em torno dos anos 20 que se inaugurou entre artes e a política uma confluência mais vigorosa do que quantas a antecederam. Seus produtos, que não terminaram nem com o final da Guerra Fria, marcaram todo o século que passou. Alguns foram notáveis e outros, ridículos. O conjunto veio acompanhado de discussões estéticas, políticas ou filosóficas que oscilaram entre o brilhante e o dogmático.
Olhando retrospectivamente essa convergência, é fácil constatar que nenhum autor significativo dessa época escapou inteiramente à sua força gravitacional. Seu legado é o de que até hoje as discussões sobre a qualidade de um poeta se acompanham de indagações a respeito de suas simpatias políticas. Além disso, as opções estilísticas vêm desde então associadas a um sinal: estas são de esquerda e aquelas, de direita. Essa associação advém menos das características intrínsecas de tal ou qual obra do que do momento em que o debate se interrompeu e os pensadores oficiais anunciaram seu veredicto irrecorrível.
Ocorre que, embora as formas e os recursos poéticos não sejam ideologicamente neutros, seu sentido é dado não tanto por uma verdade interior e imutável que a garimpagem crítica e a estratosfera filosófica possam constatar e atestar quanto por sua história, ou melhor, histórias diferentes em cada país. A discussão sobre as formas fixas e as livres ilustra bem esse ponto. Na tradição francesa ou luso-brasileira a metrificação e a rima têm sido consideradas uma herança da alta cultura gestada nas cortes e perpetuada por aristocratas e bacharéis. Na russa ou alemã, é o contrário que se verifica, de modo que as formas fixas são vistas como populares e as livres, como uma moda divulgada por gente elitista e cosmopolita.
Enquanto prevaleceu a orientação soviética, poetas como os franceses Louis Aragon (1897-1982) e Eugène Guillevic (1907-97) aderiram com habilidade se bem que nem sempre com convicção às formas fixas. Conforme Drummond e Vinicius de Morais se aproximaram das doutrinas oficiais, eles trocaram o verso livre por sonetos e baladas. Conversões semelhantes foram comuns em toda parte e, por mais que soem superficiais, elas determinaram o que, num longo período, mereceria, em termos formais, ser chamado de poesia de esquerda.
A partir dos anos 30, os vínculos originalmente voluntários entre os poetas que compartilhavam uma visão de mundo se institucionalizaram e, seja os do partido, seja os "companheiros de viagem" se incorporaram a uma rede de congressos e diatribes, de premiações e excomunhões, de revistas, traduções etc. Essa rede, que uniu europeus a asiáticos a africanos a sul-americanos e assim por diante, malgrado seus altos e baixos, ajudou a definir e a promover a linguagem da poesia moderna.
A razão central de tal sucesso é clara: a rede em questão, do chileno Pablo Neruda (1904-73) ao peruano César Vallejo (1892-1938), do italiano Salvatore Quasimodo (1901-68) ao tcheco Vitezlav Nezval (1900-58), do escocês Hugh MacDiarmid (1892-1978) ao espanhol Rafael Alberti (1902-2001), do sueco Arthur Lundkvist (1906-91) ao alemão Bertolt Brecht (1898-1956), do grego Ianis Ritsos (1909-90) ao turco Nazim Hikmet (1902-63), atraiu grande parte dos maiores (e mais produtivos) nomes poéticos dos últimos cem anos.


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