São Paulo, quinta-feira, 19 de julho de 2007

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Filé à francesa


Jantamos com Glucksmann em Copacabana, e ele dizia que o totalitarismo de esquerda estava em Marx


UM grupo de estudantes do MEP havia "caído". Estávamos em 1978, ditadura Geisel, que havia matado Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho. O MEP era o Movimento pela Emancipação do Proletariado, um dos inúmeros grupinhos clandestinos que compunham o cenário pulverizado da extrema-esquerda. Eu estudava na PUC do Rio e era ligado a uma outra turma, amiga do pessoal do MEP.
Alardeamos a prisão no campus e nas salas de aula. E decidimos organizar um show para chamar a atenção, já que a ditadura tinha o "direito" de manter os presos incomunicáveis. Convidaríamos diversos artistas para o evento, que seria na sede da Associação Brasileira de Imprensa, no centro do Rio.
Eu e uma amiga insistimos para que Caetano Veloso entrasse na lista, embora a maior parte dos nossos amigos de esquerda o considerasse suspeito. Um "desbundado".
Caetano estava lançando o LP "Bicho", do qual constava a canção "Leãozinho", que exemplificava, aos olhos desses críticos, o seu desprezível senso político.
Depois de alguma insistência, ele acabou nos recebendo em seu apartamento térreo no Leblon, perto do bar Caneco 70. E, para surpresa geral, topou participar do show. ABI lotada, ele chegou com o violão e nos sentamos no canto do palco. Logo veio um bilhetinho da platéia: "Se cantar "Leãozinho", leva porrada".
Foi por essa época que André Glucksmann visitou o Brasil. Conheci-o na PUC, onde foi conversar com professores e estudantes. Contamos sobre a prisão dos estudantes, e ele, claro, mostrou-se solidário.
Eu e meu amigo Italo Moriconi Jr. jantamos com o novo filósofo num restaurante da avenida Atlântica -e explicamos que o "filé à francesa" do cardápio nada tinha a ver com a culinária de seu país.
Glucksmann falou sobre direitos humanos e o totalitarismo socialista, cujas origens, a seu ver, não deveriam ser buscadas em Stálin ou em Lênin, mas no próprio Marx. Embora ligado a um grupo que se autodenominava marxista-leninista, àquela altura eu já não gostava da religião secular da militância e sabia que o totalitarismo soviético era mais do que um "desvio" stalinista.
Muitas coisas aconteceram nesses quase 30 anos. E algumas delas têm dado razão a Glucksmann, cujas opiniões são descartadas sem maiores considerações por intelectuais de esquerda que o consideram um filósofo de direita.
Em recente entrevista à Folha, o ex-maoísta criticou a esquerda francesa por ter esquecido a luta pela liberdade e mencionou a transformação do antiamericanismo em "religião dos imbecis".
Na verdade, a esquerda jamais deu uma resposta convincente à questão das liberdades. Alguns, no plano das idéias, tentam conciliar socialismo e democracia, mas a experiência concreta, histórica, fala mais alto. E é sintomático (e assustador) o fato de que militantes de esquerda possam ver mais virtudes no fascismo islâmico do que na democracia ocidental -"burguesa".
Ah, ia esquecendo: sim, Caetano cantou "Leãozinho" na ABI. E, felizmente, saiu incólume.


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