São Paulo, quinta-feira, 19 de julho de 2007

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NINA HORTA

A segunda colheita


Poderia ser um filme triste retratando a fome, mas se passa num país desenvolvido, de comida em excesso


"LES GLANEURS et la Glaneuse" é um documentário de Agnès Varda, que olhou no dicionário "Larousse" e certificou-se de que glaneurs são aqueles que, depois das colheitas, invadem os campos para pegar tudo o que foi deixado para trás, inadvertidamente ou de propósito. Poderia ser um filme triste e amargo retratando a fome, mas como se passa num país desenvolvido, de sociedade saciada, comida em excesso, poucos têm a verdadeira necessidade de ir buscar a sobrevivência em restos. Os catadores de hoje são movidos pelo prazer, pela educação que tiveram, pela tradição. E são poucos. O filme é positivo e despretensioso.
O documentário é filmado com uma pequena câmera de mão digital pela própria Agnès Varda, dentro de um carro que corre algumas regiões da França. Estamos indo agora para Arras. Ali mesmo, vemos a colheita de 4.500 toneladas de batatas. Cerca de 25 toneladas fogem a um determinado padrão de mercado e são jogadas num campo qualquer, sem aviso. (Uma das coisas que se insinua que deveriam ser implantadas para o povo são pequenos mapas, indicando o lugar e o dia em que a comida será jogada fora e os pontos em que há possibilidade de uma segunda colheita.)
Aparecem poucos glaneurs, muitas vezes crianças brincalhonas e barulhentas que, enquanto guardam as batatas na sacola, cantam lundi des patates et dimanche, gratin aux pommes de terre...
Passamos por um restaurante de um jovem chef estrelado, econômico na sua cozinha, aproveitador das sobras, e também glaneur. Ele próprio sai para colher muitas das ervas e faz expedições atrás de frutas para geléias. Edouard Loubet, que desde a infância escuta a ordem muito comum na França de não gaspiller, não desperdiçar.
Aqui surge um novo termo francês, que significa a mesma coisa que glaner, colher as sobras, que é o verbo grapiller. Glaner é colher coisas que crescem para cima, trigo, milho, cereais em geral, e grapiller é colher coisas que pendem, como maçãs, figos, azeitonas, uvas.
No caminho, um homem de botas corre a cidadezinha remexendo as latas de lixo porque tira 100% de sua comida de lá. Revela que tem salário fixo e que comendo há mais de dez anos das latas de lixo, nunca adoeceu. E faz isso por ética, bandeira que levanta contra o consumo excessivo e desperdício. E discursa, apaixonadamente. "Todo mundo, rico ou pobre, joga comida fora. Por quê? Porque somos uns imbecis em matéria de comida. Se um iogurte já perdeu a validade, as pessoas dizem: Ai, meu Deus, não posso comer essa coisa. Vai me matar! Uma burrice. É tão fácil saber se está estragado pelo cheiro e pelo aspecto!"
Outro rapaz é interrogado pela autora enquanto come um maço de salsa no fim da feira, como se estivesse se servindo do bufê frio de um hotel. Come com gosto, troc, troc, nos funchos, salsões, tomates, maçãs. Responde: "A salsa é cheia de vitamina C e E, beta caroteno, zinco e magnésio. É excelente. Como também umas seis maçãs por dia. Sou vegetariano. E me levanto muito cedo para chegar ao lixo das padarias que jogam fora o pão do dia anterior." É biólogo e dá aulas grátis à noite. Um glaneur que come de olho nos valores nutritivos.
Até parece que o filme é sobre comida. Não é. Estou distorcendo tudo, num assunto só. Mas é um documentário delicado, bonito, interessante, despretensioso. Se querem saber a palavra em português para "glaner", é respigar. Achei que tanto faria usar um ou outro.
Temos também a reciclagem urbana, os lixos de padarias e supermercados, o lixo como arte, como lazer, e sei lá, aqui com os meus botões, a maioria destes glaneurs que não precisam disto têm o miolo meio mole. Um desvio comportamental. Que não incomoda ninguém.

ninahorta@uol.com.br


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