São Paulo, sábado, 19 de julho de 2008

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Crítica/"O Encontro"

Livro segue sinais de destruição em tentativa de revisão familiar

Obra vencedora do Booker Prize lança pistas de passado de que nem a narradora tem certeza

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O dramaturgo inglês Joe Orton tem uma peça cujo título traduz-se como "O que o Mordomo Viu" ("What the Butler Saw"). "O Encontro", romance com que a irlandesa Anne Enright ganhou o Man Booker Prize de 2007, poderia ser descrito como "O que Veronica Viu. Talvez". O livro se inicia com a protagonista e narradora Veronica disposta a contar um evento da infância, do qual foi testemunha e que envolveu seu irmão mais velho Liam. Mas ela não está segura do que ocorreu. Segundo a personagem, o que talvez nem tenha acontecido pode se chamar de "crime da carne". Mas, como abordá-lo agora que "a carne há muito se desfez" e ela não sabe bem "qual mágoa pode restar nos ossos"? O leitor fica naturalmente curioso sobre a natureza do crime e sobre de quem é a carne criminosa e desfeita, mas fatos demoram a se juntar num todo mais ou menos coerente. Quando Veronica inicia seu relato, Liam havia acabado de se suicidar. Mas o leitor só compreende isso bem depois. Liam é o irmão de quem Veronica era mais chegada. A família é extensíssima. A mãe teve 12 filhos (além de sete abortos). Veronica não a perdoa pela inconseqüência de tal fertilidade. Como não perdoa o marido pela arrogância nem as filhas pelo egoísmo infantil. Veronica é uma mulher raivosa. Não significa que a raiva a impeça de reconhecer a própria implicação nas situações que a frustram. O cargo importante do marido levou o casal a um acordo pelo qual ela abandonaria o emprego de jornalista especializada em decoração, para cuidar das filhas. Veronica, porém, sabe que não sente falta de escrever sobre toalheiros aquecidos e tons de areia e creme. Não há culpados no relato. A raiva e a frustração existem, mas não há um registro superior para ajustar as contas, conferindo punições e redenções. A ausência dessa instância implica ainda a indefinição que percorre os fatos. Veronica quer reconstruir a história da família, desde os avós, mas vê que as lembranças são falhas e que o que tem são suposições.

Nenhum grão de areia
Em um capítulo pelo meio do livro, ela recorda a ocasião em que a avó Ada levou-a com Liam e a irmã Kitty à praia. O trajeto é longo e envolve uma parada em "um lugar chamado St. Ita", ao qual se chega por uma estradinha rural. No caminho, ao longe e em frente, vê-se um homem que se movimenta por meio de dois bastões. Veronica pressente que há algo de assustador nele, como uma deformação no rosto, mas, para assegurar-se disso, teriam de passar pelo homem. Apesar do passo trôpego, ele mantém-se sempre adiante. Aos poucos o leitor percebe que St. Ita é um hospício e que Ada levara os netos até lá porque queria visitar um irmão. Contudo, ao chegar, deixa as crianças em uma quadra de onde se vê o mar. O capítulo se encerra sem que o leitor penetre no misterioso St. Ita, distinga a face do estranho homem na estrada ou veja qualquer praia. O capítulo que se inicia anunciando um dia na praia não fornece nenhum grão de areia. Assim se dá com a narrativa de Enright. Seguimos maravilhados pelos sinais de destruição sem que vejamos o verdadeiro núcleo sinistro que os produz. Ou, quando o vislumbramos por um instante, as incertezas são tantas que não sabemos se estamos diante do motor infernal ou de outro de seus rastros -o qual nos cabe seguir por um caminho que é tão belo quanto terrível.

O ENCONTRO
Autora: Anne Enright
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 35 (244 págs.)
Avaliação: ótimo



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